460-O OLEIRO QUE AMAVA LIVROS-História e tijolos

— Piacere! So Fillipo. Fillipo, come Fillipo Giordano Bruno.

Abriu um sorriso amplo, de dentes alvos, entre a cerrada barba. Estendeu a mão direita e com o braço esquerdo puxou Olívio num abraço forte.

Tia Hermínia apareceu, vindo da cozinha, enxugando as mãos no avental.

— Salvador! Há quanto tempo! Como cresceu!

Pegando-me pelos braços, abraçou-me e beijou-me no rosto, um beijo com forte aroma de temperos.

Olívio quedou-se mudo ante a euforia do casal, enquanto que eu, já afeito às manifestações de carinho dos tios, retribui à altura, com abraços, beijos e muitos risos. Após as trocas de admiração e de informações entre pessoas que não se viam há muito tempo, expliquei ao tio Filipo e à tia Hermínia o motivo da visita.

— Olívio é meu colega de trabalho, em São Paulo. Como tiramos férias ao mesmo tempo, convidei-o para passar alguns dias em nossa casa. Quando falei de um tio que era oleiro, ele se interessou em conhecer uma olaria. Sabe como é esse pessoal de cidade grande. Não tem a mínima noção de como são feitas as coisas mais simples, como tijolos, por exemplo.

— Pois vieram no lugar certo. — Tio Filipo falava rindo. — O que sei fazer mesmo é tijolo.

Havíamos chegado à chácara de Tio Felipo pelas duas horas da tarde. A distância entre a chácara e a cidade era de apenas dois quilômetros e eu pensava que, com um rápido giro, a curiosidade de Olívio seria satisfeita e voltaríamos antes do anoitecer.

— Mas, primeiro, venham tomar um café. Estava justamente servindo a mesa para o café da tarde. — Tia Hermínia era uma mulher de maneiras exuberantes, como convêm às napolitanas. Não aceitou nossas desculpas e nos arrastou para a cozinha, onde uma grande mesa estava com a toalha estendida. Pães de fubá, roscas, broas, sequilhos e biscoitos estavam colocados sobre a mesa, tudo feito pela tia, perfeita mestra na arte de cozinhar e assar.

— E só colocar mais duas xícaras.

Tomamos o café. Tio Filipo não parava de falar.

— Vieram no dia certo. Hoje é dia da queimada dos tijolos. Isto é, da noite da queimada.

— Queimada? Como é isso? — Olavo perguntou.

— Vocês verão. É uma noite de trabalho estafante. Só a cada duas semanas e sempre às sextas-feiras.

Após o café, descemos para a olaria, que ficava num terreno aplainado, em contrataste com a irregularidade de toda a chacrinha. De um lado, uma capoeira por onde um passava um córrego preguiçoso. Do outro lado, uma plantação de eucaliptos. Mais além, podia-se divisar o barreiro, de onde era extraída a matéria prima, o barro, para a olaria.

Tio Filipo estava contente pelo interesse mostrado por Olívio. Apontava para um lado e para outro, explicando como funcionava a pequena indústria.

— Ali está a pipa. Colocamos o barro que vem lá de cima (apontando o barreiro), misturado com um pouco de areia e saibro, que é terra de liga. O segredo está na mistura. Na pipa a mistura é moída. Saindo dali, vai para as bancas, onde os oleiros batem os tijolos. Vejam, três estão trabalhando agora. Serviço puxado.

Pudemos ver os oleiros no afã de produzir tijolos. Nus da cintura para cima, os corpos suados, apesar de trabalharem em barracões frescos. Um monte de barro macio está ao lado da banca. O oleiro abaixa-se e, num movimento rápido, “corta” com a mão um pedaço de barro, que lança, com força, dentro da forma de madeira que está sobre uma pequena banca. Em seguida apara, com um arco de fio de arame, o excesso de barro que joga de volta ao monte. Pega a forma, cheia de barro, vira-a sobre uma tabuinha pouco maior do que o formato do tijolo. O tijolo sai da forma. Com outra tabuinha, segura o tijolo com cuidado, e o coloca no chão, ao lado de centenas de tijolos batidos naquele dia.

— Que trabalho cansativo! — Comentou Olívio.

— Sim, é cansativo. Porém, um bom batedor de tijolos bate 1.500 por dia. Ganha um bom ordenado. Mas tem que ser forte.— Explicou meu tio.

Percorremos os barracões, simples cobertas de folhas do coqueiro de indaiá, abundante na região. O ambiente era fresco, o barro e os tijolos crus transmitiam umidade ao ambiente. Pilhas e pilhas de tijolos amontoados, fazendo pequenos corredores escuros.

— Agora vamos ao forno. Já está quase pronto.

Fomos ao local chamado forno. Uma pilha de milhares de tijolos crus mas firmes, amontoados num monte quadrangular de uns cinco metros de altura.

— Aqui cozinhamos os tijolos. Hoje à noite. Vocês vão ver o que é trabalhar duro.

Descemos por uma escada lateral, cavada no barranco, até as bocas do forno. Eram quatro bocas, mais parecem pequenas cavernas cavadas bem abaixo da grande pilha de títulos.

— Temos 20.000 tijolos empilhados aí em cima. Há uma técnica para empilhar, não devem ficar exatamente juntos, “colados” uns aos outros, mas também não podem ficar distantes. A separação é necessária para que o calor passe entre os tijolos, queimando-os. Sobre os tijolos do tope já mandei embarrear, isto é, colocar uma camada leve de barro, para conservar o calor.

— A queimada é sempre à noite? — Perguntei.

— Sim. Se fosse de dia, ninguém suportaria o calor. Mas vejam que já tem um fogo fraco. Os tijolos devem ser aquecidos lentamente, antes de serem totalmente cozidos. Este preparo dura dois dias. Hoje à noite é que atiçaremos o fogo de verdade. Estão vendo estas pilhas de lenha, aqui? Serão todas queimadas durante a noite.

Abaixamos-nos para ver as pequenas cavernas, já cheias de lenha.

—Vamos passar a noite toda jogando mais lenha nas bocas. Vocês verão. — Tio Felipo dizia como se nós fossemos presenciar a queimada. Não sabia se era um convite ou uma ordem.

— Vamos ao outro lado, no barreiro.

Atravessamos o córrego. O barreiro ficava no alto de uma pequena elevação. Encontramos com uma carroça cheia de barro, descendo o morro.

— ’Tardes! — falou o carroceiro, que ia a pé, guiando o burro. — Cuidado móde num iscorregá no barro.

De fato, apesar de ser num local alto, era bem escorregadio. A escavação por certo atingira algum veio d’água e grandes poças se formavam na área. Nossos sapatos se enlamearam, por mais cuidado que tivéssemos.

Quando voltávamos do barreiro, ouvimos um alarido no meio da mata.

— Que cantoria é essa? — perguntei.

— Os oleiros estão se lavando num pocinho formado pelo córrego. Já são quatro horas e eles terminaram a tarefa. Tomam banho lá. Ficam aqui só o Zé Pina e o Dito Malengo, que vão me ajudar na queimada.

Voltamos à casa. Tentamos nos despedir ainda na porta, mas fomos impedidos por Tia Hermínia.

— Ma, como?! Não vão voltar sem experimentar minha minestra. Já está quase pronta.

— E mais tarde, vão assistir à queimada. É um espetáculo! — Disse Tio Filipo.

Não tivemos desculpas. Limpamos bem os calçados antes de entrar.

— Enquanto esperamos, quero mostrar uma coisinha pra vocês. — Tio Filipo , com um sinal, chamou-nos, para que o seguisse. Passamos da sala de visitas para o seu quarto, um tanto quanto constrangidos.

— Não se acanhem. Venham ver meus livros.

Dirigiu-se para uma porta trancada, que destrancou e entrou. Abriu uma janela do pequeno quarto.

— Entrem.

Fiquei de queixo caído ao ver o que vi. O pequeno quarto, de uns três por três metros, tinha as paredes forradas do chão ao teto, por estantes com livros. Uma mesa e uma cadeira eram os únicos móveis no recinto, colocados de modo a que a luz da janela incidisse direto sobre a mesa, proporcionando claridade propícia à leitura e à escrita.

— Mas...tio! Nunca soube que o senhor tinha esta biblioteca! — Exclamei.

— Psit. Bocca chiusa! Poucas pessoas, além de Hermínia e dos filhos, sabem da existência desta pequena biblioteca.

Entramos, ávidos por examinar o conteúdo da biblioteca. Então, a surpresa de transformou em êxtase e admiração. Coleções completas de grandes filósofos, de viagens e explorações, muitos volumes de história, geografia e biografias. A maioria em italiano, alguns em francês. Em português, os grandes nomes da nossa literatura. Montes de revistas e jornais em algumas prateleiras. Outras prateleiras estavam lotadas de cadernos e folhas manuscritas.

Fiz aquela pergunta clássica e idiota:

— O senhor já leu tudo isto, tio?

— Alguns, ainda não. Porém, quero que me prometam jamais contar a ninguém o que viram aqui.

— Sim, claro. — Falamos Olívio e eu, em uníssono. — Mas qual é a causa de tanto mistério?

— Tenho medo das autoridades...Sou italiano e...

A explicação de tio Filipo foi interrompida pelo chamado da tia:

— Ecco! La minestra é pronta!

Enquanto tomávamos a sopa de legumes, verduras e macarrão miúdo, acompanhada do delicioso pão de alho, tio Filipo tentou reatar a conversa sobre seus livros. Entretanto, tia Hermínia o interrompia, com perguntas sobre minha situação em São Paulo, sobre a família de Olívio, até que ele desistiu.

Escurecia quando deixamos a casa para voltarmos à olaria. As sombras tomavam conta do interior dos grandes galpões. O telheiro que brigava o forno também estava sombrio. Um candeeiro aceso por um dos dois oleiros lançava uma luz fraca no recinto onde passaríamos boa parte daquela noite.

— Vamos, ragazzi. Andiamo al lavoro.

Zé Pina e Dito Malengo estavam sentados nas pilhas de lenha. Levantaram-se ao ouvirem o patrão.

Com palhas secas de milho iniciaram o fogo nas bocas do forno. Atiravam as palhas sobre a lenha já colocada, atingindo ao mesmo tempo o fundo, o meio e a boca das pequenas cavernas. Não demorou muito, o fogo se alastrou por toda a extensão e o calor se fez sentir.

— Vocês não fiquem muito perto. Abriguem-se detrás da pilha de lenha.

E começou a queimada. De tempos em tempos, novas achas eram lançadas dentro das cavernas para alimentar o fogo e aumentar cada vez mais o calor necessário ao cozimento dos tijolos.

Fascinados pelo fogo, que de amarelo passava a branco, ficamos alguns momentos observando.

— Devemos manter esse fogo aceso e forte por toda a noite, até de madrugada. O calor vai ficar infernal.

Tio Felipo ajudava os dois empregados nas atividades. Nos intervalos, vinha conversar conosco. Sentava-se sobre uma tora, enxugava o suor da testa com um lenço vermelho.

— Vocês perguntaram porque não gosto de que ninguém saiba do meu amor, minha paixão, pelos livros. Vou lhe dizer.

E então se estendeu na explicação.

— Sou italiano, nasci em Nápoles e vim para o Brasil com meus pais com oito anos. Nunca me naturalizei. Meu pai tinha orgulho de ser napolitano, e passou-me este sentimento pela bela Itália. Durante a Primeira Guerra Mundial, ele foi muito aborrecido pelas autoridades, porque não quis se naturalizar brasileiro. Também não providenciou para que eu fosse naturalizado. A maioria dos livros que vocês viram, os escritos em italiano e em francês, ele trouxe consigo quando veio para o Brasil. Aprendi o que sei lendo aqueles livros. A família é católica, as mulheres vão à missa, coisa e tal, mas eu não. Nunca topei o pároco e ele não gosta de mim. Participei da Maçonaria e sai dela por detestar ritos. Os maçons não gostam de mim, pois minha franqueza os desagrada. E agora, com esta guerra na Europa, que não tardará em chegar até nós, as coisas estão ficando de novo difíceis para os italianos.

— Tio Francesco resolveu fechar sua loja. A fiscalização estava importunando-o. — Comentei, ajudando tio Filipo a se abrir conosco.

— Ecco! O delegado é um tapado. Também já discuti com ele. Se souber que tenho livros vindos da Itália, escritos numa língua que ele não entende, é bem capaz de confiscá-los.

O calor sob o telheiro do forno aumentava. Eu e Olívio afastamos um pouco do local. Tio Felipo nos chamou de volta.

— Devem ficar debaixo do telheiro. É preciso ter cuidado com a friagem da noite. Este calor não combina com o sereno. Já aconteceu aqui de um trabalhador que quase morreu, ao sair de madrugada direto para o córrego. Saiu quente, tomou sereno, se estuporou.

— Estuporou?

— Sim. Ficou totalmente deformado, aleijado. Os músculos da cara, das pernas e dos braços entortaram-se. Lilico Torto, que vocês já devem ter visto na cidade, pedindo esmolas. Parece o corcunda de Notre Dame naquele filme que passou no cinema.

Olívio, talvez instigado pela lembrança do personagem de Alexandre Dumas, falou propositadamente:

— Estas fogueiras parecem aquelas da Inquisição...A que queimou Giordanno Bruno...

Tio Felipo pegou a deixa no ar.

— As fogueiras da Inquisição! Quanta gente queimada, morta, por nada — ou por tudo. Vocês sabiam que Giordanno Bruno era napolitano, como eu? Fillippo Giordanno Bruno...che uomo! Foi monge Dominicano, tornou-se filósofo, contestou vários dogmas da Igreja Católica, foi excomungado pelo Papa, viajou pela Europa de seu tempo, ensinando e escrevendo.

— Foi dele a idéia de heliocentrismo? — Perguntou Olívio, atento à narrativa.

— Não. Copérnico já havia elaborado uma teoria. Mas Giordanno Bruno afirmava que sua teoria do heliocentrismo, de forte conteúdo místico, era mais importante do que Copérnico, que era apenas um matemático. A idéia de um Universo infinito com estrelas espalhadas por todas as partes, onde não havia lugar nem para um Céu, Purgatório e muito menos para o Inferno, foi considerada ofensiva pela Igreja de Roma.

— E quanto ao seu processo de ajuda à memória? — Me lembrei de algo que havia lido recentemente e coloquei mais lenha na fogueira da nossa discussão.

— Ele dedicou anos de estudo à arte da memória e criou um sistema de memória baseado no conhecimento organizado. Mas era um homem impetuoso. Indispôs-se também com os calvinistas. Quando estava em Veneza foi preso e acusado de diversas heresias contra a doutrina da Igreja Católica. Não renegou suas idéias, apenas afirmou que nada tinha a ver com a religião católica, pois se tratava de filosofia pura. A Santa Inquisição não perdeu tempo e o queimou em fogueira pública.

As últimas frases foram pronunciadas por tio Filipo com uma tristeza indisfarçável. Era como se ele estivesse falando da morte de um amigo ou parente próximo. Caímos num silêncio reverente.

— Ecco! Está na hora de tapar as bocas do forno.

O fogo havia amainado, só se viam brasas, mas o calor ainda era muito grande. Os ajudantes tinham preparado uma caixa com barro mole e trazido alguns tijolos. Rapidamente, foram assentando os tijolos com o barro, cobrindo as bocas do forno. O serviço foi rápido, pois todos trabalhavam vigorosamente.

— Com estes tapumes, o calor conserva-se por muitas horas. . Durante o sábado, domingo e segunda, os tijolos ficam aí, cozinhando. Só vamos tirar os tijolos na terça feira.

— Agora vamos dormir. Zé Pina e Dito Malengo têm um quartinho perto de casa. Vocês dois dormem no quarto dos meninos, lá tem colchões de sobra.

Subimos pela estrada iluminada apenas pelas estrelas. Um silêncio imenso descia sobre o mundo. Ouvíamos apenas nossos passos sobre o mato rasteiro.

Olívio aproximou-se de mim e cochichou-me:

— Jamais pensaria em encontrar neste fim-de-mundo um oleiro que amasse os livros.

Olhando para o céu onde milhares de estrelas piscavam, fiquei pensando sobre as teorias de Giordanno Bruno, sua coragem e fidelidade às suas próprias idéias. E me veio uma grande admiração pelo tio Filipo, um homem simples, oleiro por profissão mas que cultuava a memória de um dos maiores filósofos da civilização ocidental.

ANTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 3 de novembro de 2007

Conto # 460 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 24/10/2014
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