459-IRMÃOS FRANZ = PAU PARA TODA OBRA

IRMÃO FRANZ: PAU PRA TODA OBRA.

São Roque da Serra, 1948

— Sente-se, Ivã! Está atrapalhando a aula. Duas faltas.

Acompanhando a ordem, ouviu-se o CLEK-CLEK de uma catraquinha que soava sempre que o Irmão aplicava a punição, ou falta.

O Irmão Franz não tolerava interrupções quando estava explicando a lição de religião. A rigor, não era aula, mas apenas a leitura, feita pelo Irmão, das perguntas respondidas pelos alunos em coro, contidas no livro de religião — um simples fascículo de vinte páginas, com o resumo das questões que os alunos, todos católicos, já haviam escutado nas aulas de catecismo.

Na ampla sala de aula, com janelas abertas para o gramado que continuava no campo de futebol do ginásio, era difícil prender a atenção dos meninos. A manhã era de sol, fresca e luminosa, e se fosse por nossa vontade, estaríamos jogando bola ou brincando lá fora, no verdejante campo.

Irmão Franz era alto, forte, loiro, cabelo cortado à escovinha, parecia um legítimo alemão. Vinha do Rio Grande do Sul, onde a congregação tinha a sede. Lecionava francês, religião, geografia e história geral. Pode parecer que o homem era uma fera pedagógica; puro engano. O ginásio era administrado por irmãos de uma congregação religiosa dedicada ao ensino e, para economizar na folha de pessoal, só mantinham dois professores leigos. A maior parte das aulas era ministrada pelos próprios irmãos. Irmão Franz era o campeão na quantidade de aulas ministradas em todo o ginásio, não por competência, mas porque topava qualquer parada.

Quando digo que “topava qualquer parada”, quero dizer exatamente isto. Não só no período das aulas, como durante as férias. Por exemplo: nas férias de janeiro de 1947, quando fui devolver alguns livros à biblioteca do ginásio, numa manhã muito quente, vi o Irmão Franz replantando a grama no campo de futebol. Ele, sozinho, ia com uma carroça até um pequeno pasto, nos arredores da cidade onde a grama crescia abundante. Cortava as placas de grama, arrumava-as na carroça, trazia para o campo de futebol, que ele já havia previamente preparado, colocava as placas no chão, batia com um pesado macete para firmá-las no chão e irrigava com grande regador de vinte litros. Uma tarefa para meia dúzia de homens que ele fazia sem qualquer ajuda.

Era também treinador (hoje se diz “técnico”) do Manchester Futebol Clube, dos alunos do ginásio. Como time de amadores, constituído pelos alunos maiores, da terceira e da quarta séries, fazia suas proezas. O Irmão organizava campeonatos inter-clubes de estudantes na região e os alunos acompanhavam o time para torcer nas cidades vizinhas, em viagens inesquecíveis.

Em classe era rigoroso na disciplina; todavia, fraco na didática. Aprendíamos suas matérias pelo método decoreba, que todos sabem o que é.

Havia a temida prova oral, no final do ano, que contava três pontos para o total de dez. Era uma prova mais de nervos do que de conhecimentos. Para sortear o ponto que cada aluno deveria dissertar, usava-se uma sacolinha de pano com pedras de víspora com o número dos pontos. Irmão Franz não prestava atenção no que o aluno dizia, contanto que o falasse rapidamente e não engasgasse. Desta forma, podia-se sair bem sem mostrar a ignorância na matéria.

No final do segundo ano, todos nós já sabíamos das tretas e mutretas para tratar com Irmão Franz. Estudei um único ponto de geografia, o mais fácil de todos, o número quinze na série de pontos a serem sorteados. Na minha vez de dissertar, enfiei a mão na pequena sacola, tirei a pedrinha oito, disse ao irmão “Quinze!” e deixei a pedra cair de novo na sacola, sem que ele tivesse tempo de conferir se era mesmo quinze. Imediatamente despejei o ponto decorado nos ouvidos do irmão. Obtive um redondo dez e nunca mudei de prática. Aliás, até melhorei a técnica nas séries subseqüentes. Sempre com boas notas.

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Ivan Solert era o aluno mais idoso, repetente de outras séries, devia ter quinze anos, quando a idade da maioria variava entre doze e treze anos. Naquela época, era uma diferença grande, ainda mais que Ivã vinha de um internato de São Paulo e era contestador. Cheio de perguntas, de “se isto” “se aquilo”, que aborreciam não só ao Irmão Franz, mas a todos professores.

Costumava fazer perguntas capciosas ou idiotas ao Irmão Franz, só para provocá-lo.

— Irmão, como é que o senhor pode provar que a igreja católica é mesmo divina? —Levantava-se sem pedir licença e despachava a pergunta. — Ela é uma organização de homens. E assim, é cheia de falhas, defeitos, erros e omissões.

— Cale-se, Ivã. — O irmão não tocou a pequena catraca, sinal de que Ivã não incorrera em falta. — Você nem merece resposta, mas vou responder assim mesmo. Se a Igreja Católica fosse obra só dos homens e não tivesse a ajuda divina, já teria ido pro beleléu há muito tempo.

Do outro lado da sala, ouviu-se a voz fina de João Maria de Jesus, coroinha na igreja matriz, dirigida ao Ivã:

— Tomou, papudo?

A sala se encheu com as gargalhadas de todos nós.

ANTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 29 de outubro de 2007

Conto # 459 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 23/10/2014
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