458-QUANDO SE AMARRAVA CACHORRO COM LINGUIÇA
IDÉIAS, fatos, pessoas e reminiscências recorrentes insistem em sair, aparecer e ter o seu lugar nas escrituras destas Milistórias. Geralmente, acontecimentos fortuitos, coisas sem importância e sem graça, registros no inconsciente, que afloram sem mais nem menos. A solução é registrar aqui antes de se transformarem em idéias obsessivas.
TIO ARMANDO é personagem constante das lembranças dos parentes. Faz parte do inconsciente familiar, devido à sua classe, elegância, educação e fino trato e mais ainda pelo seu espírito brincalhão e afável, pela disposição em ajudar e ouvir sempre as lamúrias dos que viviam ao seu redor.
Estas lembranças são do tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça. Eram tempos tão pacatos, tão tranqüilos que, conforme o dito popular, podia-se deixar um cachorro amarrado ao lado de uma rodilha de lingüiça, que o animal respeitava, não mexia na lingüiça, embora o aroma provocasse intensa salivação e olhares gulosos. Nunca vi mas, como se diz, o povo aumenta mas não inventa; então creio que isto acontecia, sim.
HAVIA muito cachorro solto nas ruas da nossa pequena cidade. Vira-latas que viviam sem eira nem beira, fuçando aqui e cheirando ali. Levantando a perna traseira sempre que passavam por um poste ou uma árvore.
No açougue, a carne era pesada e amarrada por um barbante. Dependurada no dedo, era um convite aos cachorros. Mas estes respeitavam o portador e jamais soube de caso de cachorro abocanhar a carne, mesmo de portador desavisado.
Era um garoto miúdo para os meus cinco anos e vinha voltando para casa, com a carne dependurada no dedo, quando passou por mim o Tio Armando, a caminho do trabalho.
— Bença, tio. Bom dia. — A educação era rigorosa e obrigatória.
— Deus te abençoe, Tuniquinho. — Ele respondeu.
Havia dado uns quatro ou cinco passos, quando ouvi um rosnado forte próximo à canela e senti na barriga da perna uma "mordida”. Pulei de banda e disparei numa carreira. Esqueci até de segurar a carne, que caiu no chão de terra. Só parei quando ouvi a voz do Tio Armando:
— Pára, Tuniquinho. Espera aí.
Parei, voltei-me e olhei para ele. Ambos estávamos assustados.
— Ai, tio! Que susto. — Comecei chorar. — Olha... o que o senhor... fez. A carne... tá suja de terra. — As lágrimas e os soluços entremeavam as palavras.
— Venha cá. — Ele, que era alto e magro, ajoelha-se e me abraça — Não se assuste. Foi brincadeira. Me desculpe.
— E agora, que vou falar pra mamãe?
— Pega a carne aí. Vamos voltar ao açougue e pedir outra.
— Num tenho mais dinheiro. A mamãe me deu só pra comprar essa aí.
— Estou lhe dizendo: eu compro outra carne pra você. Me desculpe.
Vendo a minha aflição, não só compra outro meio quilo de carne, como volta comigo até a casa, a fim de explicar à minha mãe a causa do choro, dos soluços e da demora na ida ao açougue.
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DOMINGO de tarde na chácara de Tio Alpineu. A família comparecia em peso, por dois motivos: completa falta do que fazer na cidade, nas aborrecidas tardes de domingo; e as jabuticabeiras da chácara, carregadas, as frutas pretinhas, brilhantes, cobrindo os troncos dos mais de trinta pés.
Piloto era um cachorro manso, que vivia rodeando a casa e o pessoal, não estranhava ninguém. Desceu com todo mundo para o pomar. Tio Armando, já armando (ops!) uma brincadeira, falou com Josué, sobrinho residente em São Paulo, rapaz forte e ágil, apontado para o Piloto:
— Cachorro amarelo de boca negra...é um perigo. Cuidado!
Nem bem Josué se vira, dando as costas ao tio, este “abocanha” a barriga da perna, rosnando alto. Josué, assustado, sem se virar e sem querer, dá um “coice” na intenção de atingir o “cachorro”. Atinge tio Armando, que cai, zonzo.
A confusão se arma: tio Armando tentando se levantar, Josué sem saber o que fazer, tio Alpineu ajudando o irmão. As mulheres e a criançada se aproximaram.
— Bem feito, Armandinho. É pra você parar com essa brincadeira.
— Coitado! Está machucado?
— Não foi nada, gente, foi só o susto.
— Zezinho, vai lá dentro, traz um copo d’água.
Josué está sem graça. Tio Armando, assustado, se levanta, limpando a roupa.
— Me desculpem, foi apenas uma brincadeira.
Depois desta, Tio Armando nunca mais brincou de morder ninguém.
ANTÔNIO GOBBO
Belo Horizonte, 23 de outubro de 2007
Conto # 458 da Série Milistórias