456-FLORES DA MORTE

Conto de Abertura do romance SENHORA DAS COROAS

O nascimento e a morte foram, desde que se entendia por gente, a motivação da sua vida. A mãe, viúva, ganhava a vida lavando roupa para fora, isto é, para as famílias ricas do centro da cidade. Isto fazia para a sobrevivência própria e da filha, Maria das Dores. A sua aptidão, o seu dom era mesmo ser parteira e lava-defuntos. Duas atividades aparentemente opostas, uma no começo e outra no fim da existência, mas que Dona Tereza exercia com o mesmo carinho, desvelo e — a verdade seja dita — com amor.

Na pequena cidade de São Roque da Serra, Dona Terê era chamada para assistir a quase todos os partos. E atendia prontamente quando era requisitada para preparar defuntos, que não era uma profissão tão digna quanto à de parteira, mas igualmente necessária, no seu tempo. Lavava e trocava o morto ou a falecida com o mesmo respeito. E ajudava até na decoração da sala do velório ou no caixão para o enterro.

Das Dores acompanhava a mãe desde tenra idade. Quando se tornou mocinha, passou a ajudar nos nascimentos, correndo com bacias de água quente, lençóis e toalhas limpas; a mãe, por mero respeito, não permitia a presença da filha na delicada e misteriosa sessão de lavar e trocar a roupa dos defuntos. Entretanto, a menina estava sempre presente nos velórios, ajeitando as flores ou arrumando as velas nos castiçais. Por iniciativa própria, elaborava pequenas coroas de flores e ramos, as quais colocava aos pés do defunto.

Das Dores começou a trabalhar assim que saiu do grupo escolar. Era bem desenvolvida, magra e alta, ágil e bem disposta, e começou como faxineira do hospital. Foi numa época de boas relações trabalhistas, as pessoas pobres conseguiam engajar num trabalho honesto e aprender um oficio ainda na meninice. De faxineira, passou a ajudar em pequenas tarefas na enfermaria e, ao completar quinze anos, fez uma surpresa à mãe:

— Mamãe, consegui! Fui “promovida”! Agora sou enfermeira!

No hospital, pelo trato delicado com os doentes e pelo espírito sempre alegre, jovial, e também pela competência, foi conquistando a simpatia dos doentes e o reconhecimento dos médicos. Ia além da sua obrigação profissional ao ajudar os familiares dos falecidos, confortando-os e orando no velório e acompanhando o enterro.

Das Dores não se casara. Ao morrer a mãe, ficou só, mas jamais solitária. Ao se aposentar, não se permitiu um dia sequer de descanso. Tratou logo de por em prática uma idéia que há muito lhe ocorrera. Montou uma loja de flores e especializou-se na confecção de coroas para defuntos.

A Flora Das Dores foi, durante muitos anos, a única da cidade. Situada estrategicamente na Praça da Saudade, defronte ao portão de entrada do cemitério, era a única fornecedora de flores e coroas para os velórios, que, então, já eram feitos nas salas especiais construídas no campo santo.

E pelo profundo sentimento de compaixão para com os mortos, Das Dores não só acompanhava-os até a última morada, como visitava todos os dias a necrópole, lembrando-se dos mais chegados e orando por todos.

Não havia morto enterrado no cemitério municipal cuja história fosse desconhecida de Das Dores. Pois ao confeccionar as coroas, ia lembrando da vida dos conhecidos, ou se enfronhando nos detalhes das mortes dos desconhecidos.

Com o passar do tempo, passeava entre os túmulos, carneiros e mausoléus como qualquer pessoa caminhasse pelas ruas da cidade, cumprimentando a todos, acenando para os amigos e se lembrando de cada um. Pra ela, a morte era tão natural como o nascimento fora para a mãe.

— A cada um, a coroa de seu merecimento. — Ela filosofava, ao entrelaçar ramos, flores e fitas. — Há os que recebem muitas coroas, há os que não recebem nenhuma. Nesta vida, não há igualdade. Isto é só depois que se atravessa o Portal da Eternidade.

É claro que alguns poucos não recebiam coroas, mas nem por isso Das Dores os ignorava. Visitava-os e dirigia-lhes a mesma atenção.

Epílogo

O Tempo, assim como a Morte, são as constantes de nossa condição humana. Das Dores foi vendo o tempo passar, a morte ceifando cada vez mais.

— ”Ela” tem andado muito ocupada. — Dizia Das Dores. — A humanidade não pára de crescer. Se não fosse Ela, já não tinha lugar pra mais ninguém aqui em baixo.

O tempo cobrava de Das Dores as noites insones, o excesso de trabalho e a falta de repouso. Perdera a agilidade, as costas arquearam-se e a vista diminuíra. Na suas andanças dentro do cemitério, caminhava com dificuldade e cansava-se com facilidade.

Na tarde enevoada e gelada de julho, Das Dores parou diversas vezes para descansar. Não se deu conta do anoitecer rápido. Quando percebeu, estava escuro. Sentiu-se desorientada. Não enxergou sequer as luzes que brilhavam sobre o portão da entrada principal.

Zanzando, foi de um lado a outro, chegando até onde algumas covas tinham sido escavadas naquele dia. Tropeçou em uma ferramenta abandona, resvalou por um monte de terra, perdeu o equilíbrio e tombou. Rolando pela terra solta, emitiu um grito fraco enquanto despencou pela cova recém-aberta.

Na escuridão total da cova, a velhinha não pode sequer se levantar. O susto da queda, a sujeira da terra úmida, e a própria condição de fraqueza impediram-na de qualquer ação. Tentou gritar. Os sons não passaram de gemidos.

No dia seguinte, o coveiro encontrou o corpo. Gelado. Os olhos escancarados evidenciavam o terror dos últimos momentos de vida da velhinha.

Poucas pessoas compareceram ao velório abreviado por condições óbvias. O enterro foi feito debaixo de fina garoa na manhã cinzenta e fria.

E Das Dores, que havia elaborado centenas de coroas não teve uma coroa, sequer um ramo de flores para ornamentar a sua sepultura.

ANTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 16 de outubro de 2007.

Conto # 456 da série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 22/10/2014
Código do texto: T5007774
Classificação de conteúdo: seguro