MAIS UM CONTO DE OLAVO BILAC MÃE MARIA

Olavo Bilac (1865-1918) foi um poeta e jornalista brasileiro. É membro fundador da Academia Brasileira de Letras, ocupou a cadeira nº 15.

MÃE MARIA

É ainda esta, no fim de minha longa vida, tão cheia de alegrias e de tristezas, a recordação mais funda que guardo dento da alma.

Fechando os olhos, para mais claramente evocar a memória dos dias da minha infância, vejo logo, nitidamente desenhada pela minha saudade, a doce figura da velha mão Maria. Tão velha!... Quando nasci, já o seu cabelo encarapinhado embranquecia. Ainda viveu comigo uns treze anos. E nunca ninguém me soube dizer onde morreu, e onde foi dormir o último sono o seu corpo de velha escrava, alquebrado por quase um século de cativeiro e de trabalho.

* * *

Comprar e vender escravos era, naquele tempo, uma coisa natural. Ninguém perguntava a um negro comprado o seu passado, como ninguém procurava saber de onde vinha a carne com que se alimentava ou a fazenda com que se vestia. De onde vinha a velha Maria, quando, logo depois de meu nascimento, meu pai a comprou? Sei apenas que era africana; e tinha talvez um passado terrível: porque, quando a interrogavam a esse respeito, um grande terror lhe dilatava os olhos, e as suas negras mãos reluzentes e calejadas eram sacudidas de um tremor convulsivo.

Conosco, a sua vida foi quase feliz. Na cidade, o cativeiro era infinitamente mais brando que na roça. Aqui, se havia menos trabalho sem tréguas, não havia, ao menos, o chicote do feitor. Lá fora, sim! lá fora, era a labuta estalfante do café, os dias terríveis sob o sol implacável, a comida pouca e o castigo muito. Maria, quando eu às vezes lhe perguntava o que era a roça, ficava calada, olhando o chão, como se estivesse revendo com horror o tormento d’essa vida antiga. Um dia, despiu a meio a camisa de algodão grosso, e mostrou-me as costas e o peito. A pele preta estava de espaço a espaço cortada de largos vergões, cicatrizes, sinais de queimaduras. Eu, com os meus inocentes olhos de seis anos, olhava aquilo sem compreender. “Como foi isso, mãe Maria?”. “Maldades dos homens, sinhozinho, maldades dos homens...”. Certa noite, como ela me contasse uma história em que se falava de crianças roubadas aos pais, perguntei: “Você nunca teve filho, mãe Maria?” A pobre negra limpou uma lágrima, e não respondeu: mudou de conversa, e continuou, com a sua meia língua atrapalhada, a contar a história, — uma dessas compridas histórias da roça, em que há saci-pererês e caiporas, almas do outro mundo e anjos do céu. E eu olhava-a, com uma secreta mágoa... Não que compreendesse bem aquilo: mas a minha inteligência de criança já adivinhava uma parte daquela dolorosa vida de cativa.

Como ainda me lembro dessas noites!... Era na sala de jantar, que tinha uma grande varanda, deitando para o quintal. Estou ainda vendo o velho sofá de madeira negra em que meu pai dormia a sesta, a longa tábua de engomar em que as mucamas passavam a ferro a roupa branca, e perto da mesa em que ardia o grande lampião de azeite, minha mãe imóvel e pálida, na sua feia e enorme cadeira de paralítica.

Moça ainda, ficara ela assim, logo depois de ter eu vindo ao mundo. Como a perdi muito cedo, não me lembro bem dela: apenas sei que era bonita e que não falava nunca. Olhava para mim, para meu pai, para as escravas, com um olhar apagado, de louca resignada e mansa.

Assim, a velha Maria foi minha verdadeira mãe. Havia ainda em casa uma senhora idosa, prima de meu pai, que era quem dirigia tudo. Essa, porém, apenas tinha tempo para governar as escravas, fazer doces, e cuidar das costuras e das roupas engomadas. — Boa mãe Maria! era ela quem me aturava... Quando eu não queria obedecer, procurava fingir-se zangada, e ameaçava-me: “Nhô Amâncio! Nhô Amâncio!” E acalmava-me, por fim, prometendo-me uma nova história. Sentava-se no chão, cruzava as pernas, e começava. Ouvia-se apenas na sala o ressonar de meu pai que dormia a sesta, o pigarro da velha prima que cosia, o ruído que faziam os ferros de engomar sobre as tábuas, e a voz arrastada de mãe Maria, falando de saci-pererês, de caiporas, de almas do outro mundo e de anjos do Senhor.

Todo aquele enredo fantástico, em que passavam bruxas cavalgando cabos de vassouras, príncipes que roubavam princesas, arcanjos que desciam do céu para curar as feridas dos escravos no tronco, negras aleijadas, que invocavam o diabo, à meia-noite, no meio do mato, e eram afinal arrebatadas por ele, numa nuvem de fogo e enxofre, — tudo aquilo se atropelava na minha cabeça, cansando-me, dando-me arrepios e vertigens de medo.

Daí a meia hora, pesavam-me as pálpebras. Aos meus ouvidos, a voz de Maria chegava cada vez mais fraca: até que quase sumia de todo, parecia vir de longe, de muito longe, vaga e indistinta como um eco. Eu deixava cair a cabeça sobre o seu colo e dormia. E era ela quem, carinhosamente, me levava para a cama, era ela quem me despia, e, obrigando-me a ficar de joelhos, tonto de sono, me fazia repetir o Padre Nosso, estropiado pela sua língua de africana.

* * *

Quando tive de ir para o colégio, — um internato sério de onde os alunos só saíam uma vez por ano, — chorei muito tempo, abraçando Mãe Maria, agarrado à sua grossa saia de riscado azul. Ela chorava também, chamando-me seu filho, beijando-me, consolando-me:

— Vai, Nhô Amâncio! vai, meu filho! vai pra ser homem! vai, Nhô Amâncio! a sua negra velha fica rezando a Nosso Senhor! a velha fica rezando!

Pela mão de meu pai, fui pela rua, soluçando, soluçando.

* * *

Oh! os primeiros dias de internato! Que casa! As salas, muito altas e muito claras, tinham um silêncio que dava medo. Entre as bancas de estudo, o padre Francisco passeava, batendo com força os tacões dos sapatos, fungando pitadas de rapé. Eu, com a morte da alma, lembrava-me da casa, lembrava-me da varanda que dava para o quintal, de minha mãe imóvel na sua enorme e feia cadeira de paralítica, da velha prima que costurava, e de mãe Maria... de mãe Maria!... e das suas mãos calejadas e reluzentes! e do seu cabelo encarapinhado! e da sua voz! e das suas histórias! E as letras do livro iam-se confundindo e dançando, vistas através das lágrimas que me embaciavam os olhos.

Mas passou a primeira semana, passou o primeiro mês, passou o primeiro trimestre. Criei amizade aos companheiros. E a minha saudade foi diminuindo, diminuindo, diminuindo...

Quando o primeiro semestre findou, já mãe Maria, e sua face, e sua carapinha, e as suas mãos, e a sua voz, e as suas histórias, me apareciam indistintamente, como no fundo de um passado remoto. À noite, quando me deitava, depois do exercício violento da cabra-cega e da barra, o sono já não me deixava pensar naquela que ficara rezando a Nosso Senhor por Nhô Amâncio. Nhô Amâncio só se lembrou de mãe Maria quando as férias chegaram...

“Ah! Nhô Amâncio! — dizia a preta chorando, de joelhos, beijando-me as mãos — como Nhô Amâncio está crescido e bonito!”

Um ano de colégio bastara para me transformar. E, agora, eu aparecia à velha ama-seca, como um novo sinhô-moço, — um sinhô-moço que tinha onze anos, que já sabia ler e escrever, que já se julgava um homem, e que às histórias atrapalhadas e tolas de mãe Maria preferia a malha e a ginástica.

A vida da casa era mesma. Apenas mãe Maria, não tendo agora sinhô-moço para criar, passara a tratar da lavagem da roupa.

E era no quintal que estava agora quase sempre, de saia levantada, patinhando na água da barreia, indo de coradouro a coradouro, — um pouco mais velha, um pouco mais trôpega, mas ainda robusta.

Foi durante essas férias que se deu o caso, cuja recordação ainda hoje, no fim da minha longa via, tão cheia de alegrias e de tristezas, é a mais viva das que guardo dentro da alma.

* * *

Uma tarde, mãe Maria lavava roupa no quintal. Desci. Ao fundo, ficavam os cercados das galinhas. Comecei a atirar-lhes pedras. Mãe Maria protestou logo: “Nhô Amancio! que maldade, menino! deixa os bichos, Nhô Amancio!” Eu ria, e continuava.

Entre mim e os cercados do galinheiro, ficavam os coradouros. As pedras passavam sobre a cabeça da velha.

— “Nhô Amâncio! Nhô Amâncio! Deus castiga, Nhô Amâncio!” — repetia a preta, mas sem gritar, receando que meu pai a ouvisse. E eu ria, e continuava. Correu então para mim... Eu ria. E as pedras passavam por elas, rentes algumas, na direção dos cercados.

Não sei como foi... Vi-a cambalear e cair, levando as mãos à cabeça, de onde o sangue corri aos borbotões. Senti no coração uma pancada seca, dolorosa. Uma nuvem de pranto me cresceu nos olhos. Corri para a velha, com a garganta sufocada de soluços.

Uma pedrada lhe quebrara a cabeça: e o sangue ensopava a sua carapinha dura, já quase toda branca. Principiei a gritar, alucinadamente. E ela, trêmula, desfalecida, apertando a ferida com a mão manchada de vermelho, murmurava:

“Não grita, Nhô Amâncio! não grita! não foi nada! não grita, que Sinhô ouve!”

Mas eu gritava. Todo o antigo afeto esquecido renascia ali, diante da minha velha mãe Maria, toda banhada em sangue, ferida por mim. Toda a casa acudira aos meus gritos. Vi junto de nós meu pai, a prima, as escravas. Então tive medo do castigo...

Mas a velha negra já tinha um sorriso nos lábios. E, olhando meu pai, que indagava a causa daquilo, dizia: “Não foi nada, Sinhô, não foi nada! A negra velha escorregou no sabão, e quebrou a cabeça nas pedras. Mas Nhô Amâncio acudiu logo. Não foi nada, Sinhô não foi nada!”

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Quando, pensada a ferida, eu, a sós com ela, a vi salva e repousada, — caí nos seus braços, pedindo-lhe perdão, cobrindo de beijos aquela face que me parecia tão bela, tão clara, tão iluminada, como a face de um daqueles anjos do Senhor, de que ela me falava nas suas compridas histórias da roça. E ela, chorando também:

“Que é isso Nhô Amâncio? que foi que mãe Maria fez?... tinha que ver que Nhô Amâncio fosse apanhar um sova por causa do cangalho de uma negra velha!...”

* * *

Daí a um ano, quando de novo voltei do colégio, ainda abracei mãe Maria. Vi-a e abracei-a ainda. pelo Natal, dois anos seguidos. Depois... morto meu pai, morta minha mãe, vendidos todos os escravos da casa, — nunca tive quem me dissesse onde foi dormir o seu último sono a minha velha mãe Maria, alquebrada por quase um século de cativeiro e trabalho.

OLAVO BILAC
Enviado por Pacomolina em 06/10/2014
Reeditado em 06/10/2014
Código do texto: T4989728
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