Flor *
Não nasci flor nem espinho. Nasci cheiro.
Falo de cheiro e noto meu cheiro ficando estranho. O céu, até onde posso sentir, está demudado. Paira uma fumaça no ar, e a atmosfera está pesada.
Foi o aroma quase sempre adocicado que me fez subir ao patamar de flor. Pense que é simples ser e ostentar o título, e vai descobrir-se equivocado. Dou de ombros, porque nada é simples. Tanto faz se você acreditar ou não em tal suprema complexidade. Não perderei meu aroma com você, e se não me valoriza, está perdendo a fisgada do espinho e o semblante de quem receberia seu presente.
É no semblante das pessoas que a beleza das flores se reflete. Em velórios, unidas em solidariedade, todas as flores são, incontestavelmente, o que há de mais sincero, além da própria morte, já que flores apenas adornam a dita, não disputam, não discutem, não contestam. Amparam o sofredor, e nesse gesto existe beleza, ternura, aroma.
O aroma de velório discrepa dos aromas dos demais momentos. A morte é transformação mordaz! Até a característica dela, de invisível visibilidade, impõe-se em contrário aos outros invisíveis.
Mas eu sou flor, agora, e me escondo de ser colhida, porque minha hora está se aproximando. O pressentimento de flor é suave, sem escândalo; minha existência é fugaz: de botão a flor muito depressa, e só não me colheram botão, porque houve descuido.
A vida de flor é solitária, embora esteja cercada de irmãs, quando no pé; de companheiras, quando no ramalhete ou na coroa. Os únicos movimentos permitidos à flores são os involuntários: nos braços do vento, nas mãos do colhedor, do florista, do entregador ou do receptor. O pior desses movimentos é rumo à lixeira. Flores também têm seu momento de degradação.
Felizmente, a curta vida em adornos, poupa a algumas de nós da longa agonia de apodrecer o caule em vasos com água fétida, muitas vezes infectada com água sanitária, que elimina nossos decompositores naturais: agonizamos mais devagar. Tem usuário que se vale inclusive de anticoncepcionais. Que medo extremado de criar!
Não me balança, nesse instante, o vento carinhoso de sempre. O que sopra agora é quente e prenunciador. Está pesado, é grosseiro... Parece fugindo de alguém, de alguma ameaça. Parece estar em combate, demais ocupado. Não pode parar para agraciar flores. Sopra num urro grave e é quase violento com minhas delicadas pétalas.
O sol também mudou. O céu parece estar em crise, e eu que conheço meu destino de flor, vencer etapas desde o nascer, estou muito aterrorizada. Minhas companheiras no campo também estão assombradas. Perguntam-se, entre elas, por que é que a atmosfera sustem-se tão tensa.
* Trecho do livro: ARREBOL, da escritora Maria Montillarez
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Boa leitura,
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