Adorável Companhia

Jamais esquecerei a expressão daquele olhar, parecia dizer tudo o que os lábios silenciaram. Quieto no canto da sala, o velho Jeremias alisava carinhosamente os pelos sedosos do Magal, um cão de raça misturada, metido a cantor. Quando rosnava emitia notas musicais, pelo menos assim interpretava a sensibilidade do seu proprietário.

O animalzinho apareceu do nada. Não se sabe quem o trouxe. O fato é que ao raiar de uma certa manhã, Jeremias abriu a porta que dava para o alpendre, e lá estava ele, engurujadinho, após um noite orvalhada, balançando a cauda, ao mesmo tempo em que sacudia agitadamente o traseiro.

O velho fitou por alguns segundos aquela humilde apresentação e estalou os dedos, num gesto característico de tentar fazê-lo aproximar-se. O visitante inesperado sequer saiu do lugar, mas os abanos do rabinho redobraram qual uma enguia contorcendo-se toda.

Arrastando-se, o velhote aproximou-se do bichinho, acocorou-se, e passou a admirá-lo, demorando-se em contar os pontinhos pretos espalhados naquele corpo esquelético. “Está faminto”, pensou o velho – “e pela exposição da língua gotejando saliva, domina-lhe a sede.”

Jeremias cuidou de saciá-lo e, após a ceia, o agradecimento quase desarticula suas ancas, a pontinha do rabo assemelhava-se a um cata-vento de brinquedo rodopiando ao vento.

O velhote há muito morava sozinho. O destino aplicara-lhe o golpe de dar sumiço nos parentes mais moços e o tempo encarregou-se de obstruir sua audição. Ficara surdo como uma porta.

Adotou de imediato a afortunada companhia, e o cão passou a entretê-lo, preenchendo o vazio dilacerante da solidão.

Seus ouvidos eram falhos, mas a compensação divina apurou sua visão. E o velho Jeremias não tardou em perceber que o novo camarada era completamente cego, vivia esbarrando-se nos obstáculos.

Ficou comovido, mas encontrou amparo na arte improvisada do fiel companheiro: a percepção aguçada dos olhos do velho capturava música nos latidos do seu hóspede, o Magal.

Impossível esquecer o brilho suntuoso nos olhos do velho Jeremias quando fui visitá-lo. O cão ladrava a mil, hostilizando-me.

Jeremias deliciava-se, a um canto da casa, embalado pela musicalidade do irado Magal.

Rui Paiva
Enviado por Rui Paiva em 06/10/2014
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