450-HOMEM OU RATO?

— Posso lhe arranjar o dinheiro que está precisando. — O doutor Renan Sorvinal, promotor da comarca de São Roque da Serra, responde a um pedido de Joaquim Miranda, dono da maior loja de ferragens da região. — Você tem bons avalistas? Estou cobrando os juros que todos cobram: cinco por cento ao mês.

O lojista tem, sim, bons avalistas, e o empréstimo se realiza ali mesmo, no gabinete do fórum onde o promotor atua. Miranda se torna mais um cliente do doutor Sorvinal, o maior agiota da cidade.

A inflação galopante dos anos da década de 1960 deixou muita gente milionária, ao mesmo tempo em que empobreceu a maioria dos brasileiros. Como em qualquer cidade brasileira, São Roque da Serra teve habitantes que se locupletaram com a agiotagem e os que se tornaram vítimas dos juros exorbitantes. Poucas pessoas conseguiram escapar do jogo de emprestar e tomar dinheiro emprestado. Nem mesmo a humilde Sinhá Zica, viúva, com mais de sessenta anos mas vigorosa trabalhadora. Empregada doméstica justamente do promotor, que lhe dava a liberdade de chamá-lo de doutor Rêrê.

Trabalhava para ele desde os tempos quando era simples advogado. Viu o sucesso do patrão com satisfação, embora nada significasse na melhoria de seu próprio salário. O fato de o advogado ter permanecido solteirão criou um vínculo diferente entre os dois. Ela cuidava do advogado como se fosse seu filho. Dava-lhe conselhos e avisos de ordem prática, jamais se esquecendo da distância que os separava, como empregada e patrão.

Sem família, a viúva morava em uma pequena casa de três cômodos, deixada pelo marido, não muito distante do palacete do patrão. De pouco gastar, foi amealhando dinheiro “para o fim da vida”, como se costumava dizer naqueles tempos. A conselho do doutor, abriu uma caderneta a prazo fixo, modalidade de depósito bancário que procurava compensar os clientes pelas perdas da inflação. Com o correr dos anos, os pequenos depósitos mensais foram se acumulando e Sinhá Zica chegou a ter uma quantia razoável no banco.

Foi quando o doutor Rêrê, agora já promovido a promotor e praticando a agiotagem desbragadamente, a avisou da possibilidade de fazer seu dinheiro render mais.

— Se a senhora quiser, posso emprestar seu dinheiro a juros. Tem muita gente precisando e a senhora pode ganhar muito mais do que deixando no banco, no prazo fixo.

Sinhá Zica nada entendia dessas atividades. Confiou no patrão e entregou-lhe a gestão das economias feitas ao longo da vida. Nenhum documento foi assinado e nenhuma testemunha presenciou a transação.

O acordo foi bem aceito pela simples mulher, pois agora seu pagamento mensal vinha acrescido dos juros. E por alguns anos, vigorou. Até o dia em que Sinhá Zica, acometida de fortes dores abdominais, consultou um médico.

— A senhora nada tem de grave. Deve ser uma vesícula preguiçosa. — O jovem médico disse, enquanto escrevia. — Vou lhe receitar uns remédios que vão lhe devolver a saúde.

Saiu do consultório aliviada e com a lista dos remédios. Quatro nomes ininteligíveis, decifrados pelo farmacêutico, que lhe informou também o custo: um valor correspondente a mais de dois meses de salário.

Tenho de pedir o dinheiro de volta, doutor Rêrê, pra comprar os remédios.– Pensou.

O doutor pareceu assustado com o pedido.

— Dinheiro? Que dinheiro?

— Aquele que eu dei pro senhor negociar. Quero que o senhor me devolva. Tou precisando pra comprar remédio.

— Acho que a senhora está sonhando. Não lhe devo nada, não senhora.

— Mas...mas o senhor até me paga a renda por mês. Agora quero o dinheiro eu lhe dei.

— Renda? Renda? O que lhe pago é um aumento de salário, nada mais.

— Doutor! Meu dinheiro está todo com o senhor. — Começava a desesperar-se.— É para comprar remédios. Se não fosse por isso, não lhe pedia, não.

— A senhora está enganada. Não lhe devo nada. Não sei do que a senhora está falando. Mas, vou ajudá-la. Como estamos no dia vinte, vou lhe fazer um adiantamento deste mês. Assim, a senhora poderá comprar os remédios.

Meteu a mão no bolso, tirou algumas notas, colocando-as nas mãos de Sinhá Zica. A mulher, abestalhada com o desfecho da conversa, aceitou as notas e começou a chorar, um choro baixo. Saiu de mansinho, sem saber o que estava realmente acontecendo.

No dia seguinte, ao servir o café da amanhã, ela observava como o doutor aprecia a sua comida, os quitutes e os doces. Comia com avidez e pressa, como sempre. Com a boca cheia, ele deu a notícia:

— Sabe, Sinhá Zica, estou de viagem. Depois de amanhã, parto para a capital. Vou tratar da minha transferência. De forma que a senhora trabalha só mais esta semana. Depois, não precisa voltar. A casa vai ficar fechada.

Sinhá Zica viu o mundo desmoronar. Não se conformara com a negativa do patrão em lhe devolver o dinheiro. Fora um golpe duro. Mas, perder também o emprego, era coisa que ela não podia aceitar. Tudo de uma só vez, era demais.

Com a voz embargada, perguntou:

— Doutor, e o meu dinheiro?

— Dona Zica, acho que a senhora não entendeu nossa conversa de ontem. Não tem dinheiro nenhum. — Alterou a voz, enquanto se levantava da mesa. — E se a senhora insistir nesse assunto, é capaz de ir parar na cadeia. A senhora nunca ouviu falar que agiotagem dá cadeia? Pois é isso. Se a senhora falar pra alguém que me emprestou dinheiro a juro, vai parar na cadeia. Na cadeia, ouviu?

Saiu de repente, batendo a porta.

Ele está mentindo. Fala que vai ser transferido, me despede, e depois volta. Pensa que vai ficar livre de mim. Conheço ele não é de hoje. Pensa que sou boba.

Naquela tarde, ao sair do palacete e voltando para sua casinha, passou pelo empório do Ananias, que tinha de tudo um pouco.

— Seu Ananias, tou com um problema sério lá em casa. Tem uma ninhada de ratos que nem me deixa dormir em paz. O senhor tem aí veneno pra matar ratos?

O homem escarafunchou no alto de uma prateleira e veio com a caixinha.

— Cuidado, hein, Sinhá Zica. Isto é um veneno que mata até gente.

Enquanto colocou o dinheiro no balcão, ela pensa:

'Pois é pra gente mesmo que eu preciso."

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 8 de setembro de 2007

Conto # 450 da série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 03/10/2014
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