443-DOUTOR QUEMADO, JUIZ- Humilde lavrador desafia Arrogante magistrado

Alto, magro, muito magro e pálido que nem defunto, desce os degraus do palacete onde mora. Com passos largos e determinados, o doutor Quemado se dirige, como faz diariamente (exceto aos sábados e domingos), ao fórum de São Roque da Serra. Metódico, rigoroso não só com horários, mas principalmente com os rituais da sua profissão, está mais atento às filigranas da aplicação justiça do que com a ética da sua autoridade.

Descendente de nobre família de Sevilha, o doutor Hector Quemado, assentado em sua poltrona elevada, dominando a todos os assistentes, se julga um deus, acima do bem e do mal, cuja missão única é distribuir a justiça – a justiça como ele a interpreta, claro. Tráz no sangue os vestígios da intolerância medieval, herdada pela linhagem paterna, e rigor do pensamento maniqueísta, da eterna recompensa do bem e da extirpação do mal.

No exercício de sua profissão identifica-se plenamente com as idéias do pároco da cidade, Padre Ranzine, que tem tanta tolerância com os inimigos da igreja quanto Torquemada, nos tempos da inquisição. Por isso, por diversas vezes, emitiu pesadas sentenças, como a proibição de bailes de carnaval nos clubes da cidade, ou a das reuniões dos maçons da Loja Fraternidade e Amor. Tais éditos, por absurdos, não foram acatados pela sociedade nem pelo delegado Davanti, que as desconheceu e deixou que os cidadãos continuassem levando a vida sem aborrecimentos gerados por autoridade tão idiota.

Para aquela manhã o doutor Quemado havia marcado diversas audiências de reclamações trabalhistas. Após atender a três ou quatro requerentes, eis que aparece à sua frente um homem de aproximadamente sessenta anos, trajando roupas limpas, porém surradas, com remendos, e calçando chinelos-de-dedo.

Ouviu com pachorra a apresentação de praxe, pelo advogado, da queixa de Josias Quaresma contra o coronel Serapião Gomes. O poderoso fazendeiro havia despachado Josias de sua fazenda, na qual o empregado trabalhara por mais de quarenta anos, sem sequer uma ajuda de custo para a remoção da família e de seus “trens” de casa.

Ao ouvir o nome do coronel, o juiz ficou alerta. Pois não é que Serapião era seu amigo e companheiro do carteado semanal? Como iria condená-lo?

Olhando para a presença esquálida de Josias, que permanecia de pé ante a alta mesa do magistrado, avaliou a situação e a figura do reclamante. Ao descer o olhar para os pés, encontrou o pretexto de que precisava para acabar de vez com aquela sessão.

— O senhor se apresenta de forma desrespeitosa ante este tribunal: em mangas de camisa, e com os pés metidos nestas chinelas-de-dedo. Assim não dá para prosseguir a sessão. O senhor volte devidamente calçado daqui a um mês.

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No dia marcado para nova audiência, Josias se apresentou: ainda que em mangas de camisa, calçava sapatos emprestados pelo filho, que lhe apertavam os pés e o faziam andar torto. Além de estarem precisando urgente de uma meia-sola.

O juiz, prevendo que o lavrador talvez poderia voltar calçando os chinelos (ou, quem sabe, até descalço, para o provocar), levou ao fórum um par de sapatos velhos, que já não mais usava, para dar ao lavrador.

Quando Josias entrou no recinto da audiência, o doutor Quemado notou o andar capenga e foi logo ironizando:

— Estou vendo que conseguiu um par de sapatos. Parece que estão um pouco apertados. Quem sabe estes aqui (e levantou o par de sapatos marrons, bastante gastos) lhe servirão melhor?

Josias Quaresma, modesto lavrador que só tinha freqüentado em criança o grupo escolar, mas que era dotado de uma grande sabedoria de vida e de um grande respeito por todos, respondeu, de cabeça erguida, em alto e bom tom:

— O senhor já me humilhou quando vim no mês passado com chinelos-de-dedo. Agora, quer me humilhar mais ainda, oferecendo estes sapatos? Eu só tô aqui pra exigir justiça.

Antônio Gobbo – Belo Horizonte, 11 de julho de 2007.

Conto # 443 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 30/09/2014
Reeditado em 30/09/2014
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