442-POR UM SACO DE LIVROS - Um causo de Totó Miranda
Era um homem de temperamento inconstante: alternava dias e dias de bem humorado com outros tantos dias de extrema irritabilidade. No período em que estava bom, Hildeu era trabalhador, fazendo pequenos bicos na cidade, dando recados, levando pequenas encomendas e entregas de mercadorias nas casas dos fregueses da venda de Totó Miranda. Por outro lado, era completamente diferente “naqueles dias”. Mergulhava em profundo estado de melancolia, vagava pela cidade sem destino, não se dava ao trabalho de sequer tomar banho.
Hildeu tinha sido professor da escola primária municipal do distrito rural de Bom Campinho, uma vila esquecida pelos lados do morro Vermelho. Quando começou a sofrer dos “ataques” de desânimo, abandonou a escola e passou a morar num quartinho com banheiro e privada no lado de fora, uma simples meia-água encostada no armazém de Totó Miranda. Seus badulaques pessoais cabiam todos numa mala de madeira, com tampa de vime trançado. Não tardou em receber o apelido da tal mala, que podia ser confundida com uma canastra.
Tinha uns parentes, irmã e sobrinho em Monte Santo. A irmã era viúva e o sobrinho era retardado, vivia babando pelos cantos da casa.
Certa manhã, em período de “alta”, Hildeu apareceu com um saco de livros na loja de Totó Miranda.
— Seu Totó, preciso de sua ajuda. Tenho de viajar urgente, agora pelo ônibus das dez, para Monte Santo. Recebi um recado, dizendo que minha irmã foi picada de cobra. Não morreu, mas está muito ruim no hospital e preciso ajudá-la. Mas não tenho dinheiro pra passagem. Só tenho vinte mil réis, preciso de mais dez. O senhor me compra este saco de livros pelos dez que tou precisando.
Totó Miranda nem seu deu ao trabalho de ver o que tinha dentro do saco. Puxou do bolso um pacote de notas e entregou a Hildeu duas notas de cinco.
— Tá aquí o dinheiro. Deixa o saco aí atrás do balcão.
Hildeu pegou o dinheiro e saiu na direção do largo Santo Antônio, de onde saíam as jardineiras para as diversas cidades da região.
Só no dia seguinte Totó Miranda se lembrou do saco de livros que havia “comprado” de Hildeu Canastra. Mais por curiosidade do que por saber o valor do conteúdo do saco, foi manuseando os volumes. Ficou surpreso com o que encontrou. Livros encadernados, com letras douradas nas lombadas e de autores famosos. Entre eles, destacou-se uma edição em espanhol, datada de 1854, de “Don Quixote de La Mancha”.
Estes livros são valiosos. Valem muito mais do que os dez mil réis que dei ao Hildeu.
Colocou o saco de livros na carroceria da pequena camioneta e foi até a loja de seu amigo Vilela, antiquário que entendia de tudo de coisas antigas.
Ao ver os mais de vinte volumes que foram empilhados à sua frente, e manuseando alguns, não teve como esconder sua surpresa.
— Estes livros são raridades preciosas. Valem um dinheirão. De quem você comprou?
Totó Miranda explicou o caso, acrescentando:
— Por certo, são livros que ele adquiriu no tempo em que era professor.
Em conseqüência da avaliação feita pelo amigo, ficou com uma certa dor na consciência.
Pobre homem. No desespero de ir ver a irmã doente, não soube do tesouro que estava negociando por tão pouco. Mas, quando ele voltar, vou lhe devolver os livros. Ou, se ele quiser, dou-lhe mais algum dinheiro, de acordo com o valor dos livros.
Assim pensando, Totó Miranda aguardou o retorno de Hildeu Canastra.
Duas semanas após, ei-lo de volta. Chegou completamente arrasado com a situação da irmã, do sobrinho e em profunda depressão. Estava num de seus piores dias, triste, aborrecido e intratável. Quando passou pela frente da loja, foi chamado por Totó Miranda.
— Hildeu, por favor, venha até aqui. Precisamos conversar sobre aqueles livros que você me vendeu. Eles não valem o que lhe paguei. Valem...
De longe, Hildeu parecia um demente. Descabelado, barbudo, as roupas amarfanhadas e sujas. Parou quando ouviu seu nome. Interrompeu Totó Miranda, destilando em suas palavras todo um destempero próprio da sua situação mental no momento:
— Vámerda, seu Totó, deixa de besteira. Vendi os livros por dez mil réis, tá vendido. Num quero saber de desmanchar o negócio. Se os livros não valem os dez mil réis, problema do senhor. Fica com eles, que num quero mais saber de livro na minha vida. Pode enfiar eles no...
E disse aquela palavrinha de duas letras que todos os leitores já adivinharam.
Antônio Gobbo –
Belo Horizonte, 5 de julho de 2007
Conto # 442 da série Milistórias