Justino e o Cego Adonias

No vilarejo de Tabaingá o anúncio da alvorada acontece quando o sol aponta seus raios em direção à Matriz, como uma bênção divina. Pardais irrequietos açulam os galhos de grandiosa mangueira.

Nos degraus da velha igreja, Justino limpa a remela dos olhos enquanto Adonias, o ceguinho, de cócoras, procura em sua sacola por sua gaita.

“Se o meu sonho desta noite acontecer, Justino, hoje a gente faz uma feira daquelas!”. O moleque sungou o nariz escorrido, deu uma geral no rosto com a manga da camisa e olhou abruptamente para o velhote: “seu Dodô, como é que sonha se nunca viu nada?”.

Já havia uma considerável aglomeração ao redor, o vaivém das pessoas tomava conta de certo trecho da rua.

“Vou fazer de conta que não escutei...Por acaso não se tem o direito de sonhar? Sabe, garoto, eu me dou conta de que agora, às minhas costas, acaba de passar o crioulo Narciso, com seu cesto carregado de pequi; por acaso, não será dona Rocilda montando sua barraca ali, no canto da praça? Ah, meu pimpolho, ver não é questão de passar os olhos sobre alguma coisa! É viver a coisa, entende? Qual a cor do céu para você? Olhe ali a barraca da mulher rendeira, quais as cores dos vestidos expostos à venda?”.

Nisto, um nobre plantador de milho apareceu e, colocando uma chuva de pratas na tigela do ceguinho, desabafou: “tome, meu pobre homem; meus dias estão terrivelmente cinzas devido a estiagem. Talvez você me dê sorte e a chuva traga de volta o dourado do meu milharal!”.

Adonias ia dizer qualquer coisa quando uma música suave, quase angelical, irrompeu da igreja. Um homem, de voz macia com acentuados toques de excitação, disse ao aproximar-se dos dois amigos: “Meu Deus, como estou feliz! Não vejo a hora de maravilhar-me ao avistar minha noiva com seu belíssimo vestido branco e contrairmos os laços matrimoniais. Nossa, como meus dias serão azuis de tanto contentamento!”. E despejou um punhado de notas no recipiente transbordante, enquanto seus sapatos fustigavam o chão, alternada e estrepitosamente.

Foi o suficiente para o ceguinho recolher seu instrumento de sopro e guardá-lo novamente na sacola. Dera por encerrado o seu expediente.

O sonho se concretizara. O velho e o garoto saíram abraçados. O sol estava a pino. Cores e energia se completavam pois, certamente, não provinham dos olhos, mas sim do coração.

Rui Paiva
Enviado por Rui Paiva em 29/09/2014
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