438-A SORTE DE LUCKY SLIM- fantasma cobra dívida de jogo
O apelido vinha a calhar: era magro e alto, características acentuadas pelo grande e pontudo chapéu de caubói e as calças estreitas, agarradas às pernas, como convém aos cavaleiros do oeste. O andar típico e pernas arqueadas de quem passa grande parte da vida sobre montarias. Tinha sorte no jogo e com as mulheres, com as quais gastava a maior parte do que ganhava com as cartas do baralho.
Tinha pouco mais de vinte e cinco, embora aparentasse ter uns trinta anos, por conta das marcas das intempéries, do sol e da chuva que desde a juventude o castigaram, no árduo trabalho de peão e vaqueiro. Atividades que tinha trocado pelo circo, devido à sua grande habilidade com o laço. Agora era atração do espetáculo de “Laços Indomáveis” do Grande Circo de Bufallo Bill.
Entrara para o circo há poucos anos. Fora em San Francisco que ingressara no elenco de artistas. A princípio ajudava o Zorro (um personagem do circo) nas peripécias de laçadas, mas a maior parte do tempo ficava nas baias tratando das montarias, que eram muitas, pois do espetáculo constavam muitas cavalgadas, encenações com ataques aos índios e simulação de caça aos búfalos. Mais de cinqüenta cavalos bem treinados, em cuja companhia Lucky Slim gostava de estar.
Com o circo, ele percorrera todo o oeste, meio-oeste, as grandes pradarias (ainda com poucas cidades, e agora estava visitando as grandes cidades da costa leste. Ao tempo desta narrativa, o Grande Circo estava estacionado num descampado relvoso nas proximidades de Nova York.
A loja de Benjamim Goldmayer era uma das mais importantes do Lower East Side, bairro de população essencialmente judia. De qualquer uma das seis portas abertas para a Grand Street podia-se ver a Sinagoga Bialystoker. Comerciante atilado, Bem Gold adiantara-se aos concorrentes com uma curiosidade: a Máquina de Premiar. Era uma caixa colorida - amarela, azul e púrpura – de metro e meio de altura por quarenta de lado e de fundo. Na parte superior, uma fresta na qual colocava-se uma ficha e na parte inferior, outra fresta, da qual saía um cartão premiado. Toda pessoa que fizesse uma compra, não importando o valor, recebia uma ficha de metal, a qual era inserida na fresta superior da máquina. O próprio cliente acionava a máquina, tocando uma manivela lateral. Ouvia-se o tilintar da ficha batendo em engrenagens metálicas no interior e, em seguida, pela fresta inferior, um cartão era ejetado. No cartão constava o valor do prêmio ganho pelo freguês, que, na maioria, variava entre cinqüenta centavos e um dólar. Algumas pessoas se lembram de ter visto sair um cartão de cinco dólares, outras ouviram falar de cartões de dez e de até cem dólares.
Goldmayer havia comprado a tal Máquina de Premiar de um alemão, que o ensinara como fazê-la funcionar, inclusive manipulando os valores dos cartões premiados. Kurt Wolfang informara que era o inventor da máquina, embora em um dos cantos houvesse uma placa metálica com duas letras, B e F. O que deixava uma certa dúvida sobre a invenção. De qualquer forma, era um chamariz para a loja de Bem Gold, que ficou conhecida como a Loja da Máquina de Premiar – e atraindo uma multidão de fregueses.
Lucky Slim precisava de um chapéu novo.
— Deve procurar na Loja da Máquina de Premiar. Tem o maior estoque e variedade de chapéus da América. — A informação era do próprio patrão, Bufallo Bill. — Foi lá que comprei este Stetson há mais de dez anos.
O vaqueiro destacava-se entre as pessoas que caminhavam pelas calçadas de Nova York. Um pouco sem jeito, talvez, entre tanta gente indo e vindo. Ao encontrar a loja, entrou, experimentou diversos chapéus e comprou um que lhe agradou. Quando pagou, recebeu a ficha metálica.
— Com esta ficha, você tenta a sorte na Máquina de |Premiar. Está vendo? É aquela caixa amarela encostada ali.
Meio sem jeito, com o grande chapéu novo na cabeça, observou uma jovem à sua frente. Inseriu a moedinha, tocou a manivela e esperou que da fenda inferior surgisse um cartão.
— Ah! Um prêmio de consolação. Apenas cinqüenta centavos! — Falou a jovem, ao ler o cartão.
Por sua vez, Lucky fez como a moça fizera: colocou a moeda, girou a manivela e esperou. O Cartão apareceu na fenda e ele o segurou com firmeza. E viu o valor do prêmio.
— Mil dólares?! — exclamou, não acreditando no que via.
Os clientes que estavam por perto se aproximaram ao ouvir o caubói, que olhava o cartão de um lado e do outro, sem saber exatamente o que fazer com ele.
Mais surpreso do Lucky Slim ficou o dono da loja. No primeiro momento, julgou que o vaqueiro estaria lhe pregando uma peça, fosse um trambiqueiro que queria lhe passar a perna. Mas ao manusear o cartão, com todas as características dos demais cartões, não havendo como negar que fazia parte da coleção de cartões da máquina — embora tivesse a mais firme certeza de que tal cartão nunca fora colocado na máquina.
De qualquer modo, não tinha como pagar o prêmio. E se não pagasse, ficaria desmoralizado e poderia até ser processado pelo vaqueiro. Tinha de agir rápido. Tendo verificado a qualidade do cartão, que mantinha em suas mãos, abriu um largo sorriso ao sortudo cliente:
— Parabéns, meu amigo! Não é todo dia que esta máquina emite um prêmio assim tão valioso. — Falava alto, para que todos os presentes (agora já eram mais de cinqüenta pessoas que rodeavam o vaqueiro e o dono da loja). Passando as mãos pelos ombros do alto caubói, convidou-o:
— Venha, entre no meu escritório. — E levou-o para a intimidade do escritório.
E lá dentro:
— Você é mesmo um homem de sorte. É a primeira vez que sai este prêmio na Máquina. Um valor grande, uma pequena fortuna.
Lucky Slim nada falava. Ainda estava bestificado. Por isso, nem escutava direito as palavras do senhor Goldmayer.
— ... esperar até o fim da semana. Tenho de avisar o banco para arranjar tal quantia. Espero que o senhor compreenda.
Lucky Slim entendeu que havia demora no pagamento, era natural, pensou.
— Sim. Volto na segunda-feira.
— O senhor fique tranqüilo.
— Eu estou muito tranqüilo, seu Goldmayer. Até segunda.
Nem na segunda, nem na terça, nem nunca Lucky Slim receberia o prêmio. No dia indicado, voltou à loja do senhor Benjamim Goldmayer, que se desmanchou em rapapés, em elogios ao vaqueiro e em atos protelatórios. Levou o sorteado para o andar superior da loja, onde morava com a família. Apresentou-o a Sara, a esposa, mulher de porte pequeno, muito pálida, vestida de preto da cabeça aos pés. E à filha, Rute, menina de uns dez anos, também coberta de roupas pretas, mas com olhar vivo e faces rosadas. Slim simpatizou-se com a garota na proporção em que se antipatizou com a mãe. Como era hora da refeição, convidou o caubói para o almoço, que ele, na simplicidade, aceitou.
— Ainda não foi possível no passado fim-de-semana reunir todo o dinheiro para lhe pagar o prêmio. Talvez amanhã ou depois....
— Sabe, senhor Goldmayer, trabalho no Circo e esta é a última semana de nossa estada aqui. Portanto, só posso esperar esta semana.
— Entendo, entendo. Volte na quarta-feira.
Na quarta-feira, a conversa se repetiu, com o almoço de permeio. Lucky dirigiu algumas palavras à menina, mas só obteve monossílabos como resposta.
No último dia, Goldmayer foi taxativo. Na verdade, aquela ficha não fora colocada na máquina e não havia como pagar o prêmio.
— Só tenho como pagar dentro de, no mínimo, seis meses. Por ora, posso lhe dar um documento, uma promissória para daqui a seis meses.
Lucky Slim verificou que realmente o judeu estava encrencado. Por isso, aceitou a palavra e a promessa por escrito para ser paga dentro de seis meses. Dobrou o documento, colocou no bolso, despediu-se do devedor, de dona Sara e da menina Rute.
Toda a negociação fora conduzida por Lucky, sem nenhum conhecimento de ninguém, nem mesmo do patrão. Lucky era discreto e, como hábil jogador, sabia da hora de ganhar e de perder. Por isso, acompanhou o circo pelas viagens pelo interior, de um lado a outro da América, sem jamais ter revelado a ninguém o resultado da negociação com o comerciante de Nova York.
Passados seis meses, Lucky estava com o circo do outro lado do continente. E pouco depois, ele deixava o circo, para se estabelecer com um rancho nas pradarias de Wyoming. A faina diária e os trabalhos na reunião de gado de engorda absorveram os dias, semanas, meses e anos do vaqueiro, agora ele mesmo patrão de diversos caubóis.
Os anos viraram décadas. O papel da dívida amareleceu, guardado entre as folhas de uma Bíblia pouco manuseada. Se Lucky Slim tinha a intenção de receber a dívida representada pelo documento, jamais a manifestou a quem quer que seja.
O negócio de Ben Gold entrou em decadência. Homem honesto, tentara por todos os meios levantar a quantia devida no prazo prometido. Em vão. Por dar mais atenção à dívida do que à gestão da loja, deixou o negócio ir por água abaixo. Morreu sem saldar a dívida e deixou a loja reduzida a apenas uma porta aberta ao público, que rareava a cada dia. A mulher seguiu-o para o além pouco tempo depois.
Rute, que passara pela adolescência e juventude sem nenhum fato memorável, envelheceu com os pais, ajudando-os enquanto pôde. Fiel à vida na qual fora criada, manteve a loja. As prateleiras agora estavam quase totalmente vazias, a única porta permanecia semicerrada e Rute aguardava, sentada rente ao balcão, a visita de um ou outro freguês. Passava parte da noite no escritório, empoeirado e decadente, antes de se recolher.
O vaqueiro gostava mesmo era do movimento da boiada, dos dias e noites engajado no tanger dos animais, de acampar com os empregados, aos quais tratava como companheiros. Corajoso, era o primeiro a enfrentar as situações perigosas, acorrer atrás de reses desgarradas. Participava dos rodeios e da marcação das reses. Mantinha-se intrépido cavaleiro e laçador exímio.
Já estava perto de completar oitenta anos e mantinha-se tão ágil e audaz quanto há 30, 40 nos atrás. E foi numa escolta de boiada destinada ao embarque na ferrovia que, à frente do imenso rebanho de mais de duas mil reses, foi atropelado pelo estouro dos animais. Segurou firme nas rédeas, crina e sela, e apertou as pernas em torno da barriga do cavalo. Engolfados pela fúria dos animais em galope cego, cavaleiro e cavalo foram arrastados e tombados, pisoteados e massacrados por milhares de cascos.
Os vaqueiros quase nada puderam fazer para salvar o patrão. Quando conseguiram chegar perto, toparam com o cavalo morto. O patrão era mais uma massa informe de sangue e carne viva dos machucados, que aparecia através da roupa dilacerada. Estava vivo. Recolheram-no com cuidado, improvisaram uma maca e o transportaram para o local mais próximo, onde um médico o atendeu.
Depois de horas de curativos, pernas e braços amarrados em talas de madeira fina, o doutor deu o serviço por terminado.
— Ele ainda teve sorte. A cabeça não foi muito pisada. Mas inspira cuidado. Não pode ser levado pra lugar nenhum. Tem de ficar aqui.
Por indicação do médico, fizeram arranjos com a senhora Benedict, viúva que dispunha de um quarto em sua casa e, mediante bom pagamento, cuidaria de Lucky até que ele pudesse ser levado de volta à fazenda.
Os cuidados da viúva foram enormes. Limpava diariamente as feridas, trocava os curativos, tirava a faixa que cobria toda a cabeça, usava os poucos remédios (na maioria, desinfetantes) que o doutor receitara.
Slim tinha momentos de consciência, intercalados com muitas horas de sono e de delírio. A mulher não queria, mas ouvia os queixumes e as palavras, no princípio difíceis de entender, mas logo formando alguma seqüência lógica.
— ...mil dólares...onde estão? ....receber...quero receber
Outras vezes, gritava:
— ...laça!...laça!... Não demore...
E voltava aos dólares:
— ...Semana que vem... não, não posso... Seis meses... já era....
A partir do terceiro dia, caiu num estado febril. Não permanecia imóvel, como recomendado pelo medido e como seria de se esperar de alguém com braços e pernas quebrados e o corpo ferido da cabeça ao pés. Movimentava-se e urrava de dor. A mulher chamou o médico.
— Daqui pra frente, temos de usar remédios para fazê-lo dormir e para as dores. Ele vai ficar quase inconsciente.
Mesmo na inconsciência, os delírios eram freqüentes. E mais difíceis de serem entendidos.
— ...mil dólares... pagamento...aaaaaiiii!... Gold... Rute...
Exatamente uma semana depois, entrou num estado letárgico do qual jamais sairia. Faleceu na tarde do dia 12 de outubro, quinta-feira, do ano de 1841.
Rute estava sentada à escrivaninha ao entardecer do dia 12 de outubro. Escrevia, a cabeça abaixando-se à medida que a luz ia diminuindo. O pequeno móvel estava empoeirado pelas bordas do tampo. Pelas paredes, teias de aranha e poeira acumulada durante muitos anos. As roupas da velha estavam manchadas e puídas.
Não percebeu o vulto que se adentrou no exíguo compartimento. Uma figura de traços difusos, mas evidentemente um acidentado, com cabeça, braços e pernas enfaixados. Por entre as faixas, manchas de sangue fresco. Caminhava com dificuldade, ou antes, levitando vagarosamente.
Ela se deu conta da múmia quando esta ficou ao seu lado. Levantou a cabeça e ouviu um som cavo, vindo das profundezas de uma caverna.
— Vim buscar os mil dólares.
— Mil dólares..Não tenho...
Imediatamente, lembrou-se dos tempos de meninice, quando o pai sofrera um golpe devido a um prêmio da Máquina de Premiar.
— Você...você é...
— Vim buscar...mil dólares.
— Não tenho.. já lhe disse...não tenho...
— Então...venha comigo.
Pegando a anciã pelo pulso, a arrastou consigo.
— Levo você... como pagamento.
Antônio Gobbo – Belo Horizonte, 9 de junho de 2007
Conto # 438 da Série Milistórias