A Travessia

A menina de cabelos compridos, pretos e luzidios, aperta os livros contra os seios e apressadamente alcança a plataforma do ônibus. A condução espremendo vidas rasga a avenida como um zíper. Vai chacoalhando o comerciário, a dona de casa, o peixeiro, não sei se há algum executivo. A alvenaria das casas são cores difusas, correndo na direção oposta. É um quase meio-dia ensolarado. O tempo arde. Sufoca.

Os passageiros vão digerindo problemas. O comerciário pensa nas férias que já não vê a hora. A doméstica na dúvida se deixou a torneira da pia jorrando. O peixeiro, ah, esse aí nem lembra a última venda, tamanha é a ressaca. A estudante de longos cabelos morde os lábios, tornando uma dor levemente espremida, a pagar-lhe um caro tributo pela nota medíocre que recebera na prova. Lembrou as noites insones rabiscando e lendo textos, dilatando as pupilas para melhor absorção, resistindo à exaustão inexorável.

O motorista pisa no freio subitamente e o vagalhão humano espraia-se por toda a cabine, anteparando-se no para-brisa. E tome-lhe “ai, ui; isto é lá jeito de transportar gente?”, “seu isso, seu aquilo, a carteira foi pelo telefone, é?”, “ai, chega que vou dar um troço!”

A parada repentina aconteceu próximo ao semáforo do Instituto dos Cegos, ali pela Bezerra. O coletivo acolheu um trio de deficientes visuais: um rapaz e duas moças, precisamente. Um cavalheiro não identificado cedeu o lugar para uma delas e se aquietou junto à catraca. O barulho da torneira aberta inquietava o juízo da madame. O comerciário rebuscava nos bolsos o cartão funcional de identificação. O homem do peixe ensaiava um valha-me Deus, que será de mim! (o gorducho do Box estava aguardando grana). A nossa estudante fingia alheamento, mas uma cobrança nociva feria-lhe o íntimo.

Rente ao canteiro central, o veículo engole sofregamente punhados de asfalto, resfolegando como um velho touro cansado. O trio de amigos tateando o encosto dos assentos, uma das moças fez menção de sentar-se e hesitou. O rapaz de olhos opacos, enfático, fez-lhe um gesto de cortesia e deu-lhe passagem, graciosamente. A outra, desengonçada, alfinetou os costados do jovem com a unha e grunhiu algo tipo “eu bem sabia que vocês estavam de namorico, eu vi tudo!” e zoaram, os três, numa estrepitosa gargalhada.

A paisagem continuava indefinida e o transporte avançava indiferente. Calor medonho. As horas abocanhavam tudo, tempo, compromissos, prestação de contas, o livro de poesias esquecido na poltrona para amenizar a culpa. Vidinha vazia, oca. Dava-se conta de que, para enxergar o verdadeiro sentido das coisas e seus valores, era necessário fechar os olhos.

Rui Paiva
Enviado por Rui Paiva em 28/09/2014
Código do texto: T4979510
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.