O DIA EM QUE O ANALFABETO CALOU O POLÍTICO

Ora, disse o político no topo do palanque: não acreditem em mentiras sobre minha pessoa, são todas falsas, eu vos garanto, podem acreditar; posto que de minha pobre origem, aprendi não tomar o que é dos outros.

Ao que, alguém no meio do povo, gritou: se é assim mesmo, como explicar suas fazendas, seus 10 carros importados e um avião? E aquela casa que o senhor tem numa ilha particular; vai dizer que o desmatamento daquilo tudo é obra da natureza?

O silêncio penetrou naquele evento, como a amante no velório defronte à viúva. Só se ouvia, mesmo quem não quisesse, o som dos galhos mexidos pelo vento que uivava.

Um assessor cochicha algo para o político. Ninguém ouve; não é para ouvir o que os assessores falam. Assim, quem fala não é o político, mas o assessor pela boca do político.

Depois de pequena pausa, esse, estufa o peito: herança!

Herança!? Outras vozes se juntam indignadas àquela que perguntara. Na verdade elas berram. Berram tanto que o político ensaia saída, mas é contido pelo assessor que sabe que se o político sair, a população ficará indignada, como também, sairá a dizer coisas sobre o político, e com isso, tanto o assessor como aqueles que bancam o politico, ficarão com seus interesses ameaçados.

Sim, herança, retoma o político. Convictamente, e também, em tom mais elevado, o político responde à plateia. Não esconde, porém, seu desagrado: seu rosto está tão ruborizado que alguém, em tom jocoso, comenta que parecia que tinha comido pimenta crua.

Silêncio.

Antes que todos saíssem, o político retoma: é herança do meu povo, da sua benevolência, e porque não dizer, obediência, que eu, outrora, um pobre coitado, fedegoso mesmo, e amparado pelos braços do meu povo, que conquistei os bens que dizem que possuo. Não vou negar, porém, não esquecendo o que meus país, que Deus os tenha, sempre me disseram que nunca se deve tomar o que é dos outros. Desde aqueles saudosos tempos eu trago isso como colado à pele, desde pequenino, desde quando me conheci gente, pobre, mas instruído no mais lapidar princípio da honestidade. Assim, embora meus adversários teimam em me atacar com as mais torpes vilanias, assim, desde que minha mainha, e logo depois meu painho, se foram, eu prometi, debruçado em seus caixões, que sairia da miséria e chegaria a uma vida mais confortável. E desde então, às vezes consumido pela fome que me dificultava o aprendizado, nunca deixei de acreditar no que prometera aos meus pais. Confesso que não foi fácil, embora, como todos vocês sabem, meus adversários dizem o contrário, todavia, não lhes dê atenção, afinal, quem sou eu para tentar mudar o que acham de mim? A esses, com a certeza da verdade como guia, e tendo, ao longo desses anos, me dedicado a outra causa senão ao próximo como se meu irmão fosse, só posso garantir que aqui cheguei com muito suor e sangue. Sei que não se calarão. Sei, também, que sobre minha pessoa outras mentiras serão inventadas, sei, e lamento profundamente, que para auferirem de vocês os votos de que precisam, meus conterrâneos e irmãos, meus opositores não medirão esforços. Outras inverdades serão amplamente anunciadas. Não se contentarão até que eu caia ao mais baixo nível nas pesquisas, porém, com a fé, marca indelével desse meu povo, bravo por natureza e honesto por princípio, sei que não se deixarão enganar. Sei, como sempre tem feito, vocês meu povo em tudo igual a mim, sei que não me abandonará nessa hora tão especial com que conduzo minha vida. Oxalá permita que eu vá em direção a essa missão, que é de lutar pelo meu povo, possa eu, obter os votos necessários para que lute por vos, mesmo que às espreitas meus adversários estejam em tocaia. Saibam, meus conterrâneos, que mesmo com esses avisos, em tudo estranho, que não me furtarei em travar essa luta. Luta que conheço de vivê-la, luta que desde que nasci, nessa terra que amo mais do que minha própria vida, essa terra dos meus pais, travo com a bravura que caracteriza nosso povo nordestino. Bem disse, há tempos passados, bem disse Euclides da Cunha, em obra espetacular, um verdadeiro maná, que o nordestino é antes de tudo um forte. Essa obra, eu diria, com encanto na alma, que essa obra funda nossa raiz nordestina!

Aplausos.

Da plateia, inerte como uma criança em posição de inferioridade frente a um adulto violento e sem escrúpulos, isoladas, quase abafadas vozes arriscam pronunciarem algo. Mas, sob os olhos atentos do assessor, que não perdia um movimento sequer naquela multidão, e sem os arroubos, típicos dos profissionais de mídia, ou mesmo daqueles que se encastelam em Partidos em nada compromissados com as mudanças fartamente anunciadas, uma mão erguida pede a palavra.

Silêncio.

Timidamente, a voz sai do meio da multidão, e sob os olhos atentos do assessor e do político, chega até à frente do palanque.

O político já não expressa seu ar ruborizado, ao contrário, refeito pelos aplausos, estende à mão aquele que se aproxima. Pode falar meu amigo, diz o político, não se esqueça, sou um de vocês, não tenha receio, pergunte o que quiser, afinal, para que serve um político se não for para ouvir dos seus o que ele tem a dizer, vamos fale.

O esquelético homem, que parecia ser uma criança, tanta era a situação de miserabilidade com que se apresentava, ensaia uma pergunta, mas cala-se defronte ao político que percebendo, e para não perder a oportunidade, coloca as mãos sobre os ombros do infeliz: vamos fale, não tenha receio.

" o senhor me desculpe", começa o homem. "O senhor me desculpe, mas, desde que o senhor começou a falar, fiquei matutando cada palavra que o senhor disse. E muitas das coisas que o senhor disse, o senhor me desculpe, mas não pude deixar de pensar como um homem que não tinha nada, como o senhor mesmo disse, era pobre igual a nós, e de repente fica rico assim? Tem um monte de coisa. Tem fazenda, carro do estrangeiro, ilha..., como pode tudo isso? Como pode? E também fala que o que falam do senhor são mentiras falsas?"

"Sim!" respondeu o político, já não mais com aquele ar de satisfação.

"O senhor me desculpe", recomeça aquele infeliz, agora sob o olhar atento do assessor e também da multidão. "O senhor vem aqui, diz um montão de coisas, mas disse que as mentiras, sobre sua pessoa, são falsas" Fiquei pensando..."se as mentiras fossem verdadeiras, então, era verdade que tudo que falavam sobre sua pessoa eram mentiras. Mas, se as mentiras são falsas, então, é verdade tudo o que falam sobre sua pessoa, não é?"

"Como assim!", grita o político.

Retoma a palavra o cidadão: "assim, se é mentira, e é verdade que é mentira, então, tudo o que ela quer dizer é falso, ou seja, é mentira mesmo. Mas, se a mentira é falsa ( e o senhor disse que era falsa), ou seja, se é falso que ela é falsa, então, tudo o que ela diz é verdadeiro"

Silêncio.

O político, depois de pequena pausa, olha para o assessor. Ambos não esboçam uma única palavra. Saem.

--- E quem fez isso, vovô?, pergunta o neto.

O velho, de cabelos bem brancos, já enrugado e olhos cansados..."eu, Pedro, eu fiz aquilo, meu neto"

O neto, esboçando orgulho..."e o político, fez o que?

_ Nada, responde o velho.

_ Mas ele foi escolhido, quer dizer, eleito?

_ Nunca mais, Pedro. Naquele dia, quer dizer, depois daquele dia, me parece que o povo se deu conta que aquele político só queria se aproveitar. Só queria que as coisas continuassem do mesmo jeito, que o povo continuasse sofrendo as mesmas faltas, as mesmas necessidades para que ele pudesse, em época de eleições, vir aqui a fazer suas promessas para aquele povo humilde e sem esperança.

_ Mora na cidade?

_ Mora.

_ É rico?

_ Continua rico, mas bem menos do que naqueles tempos.

_ E o assessor?

_ Esse nunca mais veio, não sei, não.

_ Sabe vô, você sempre disse que inducação...

_ Educação, corrige o avô.

_ É, educação. Você sempre disse que só a educação salva o povo. Fiquei pensando..., meu avô não estudou, mas calo um político safado, imagine se tivesse estudado..., Sabe vô, você sempre disse que a educação é tudo, só com ela é que o povo pode mudar as coisas. Mas também sempre disse que todos nós temos uma intuição (acho bonita essa palavra) que, sem a gente saber muito, ela nos mostra quando alguma coisa está errada. Acho que sua intuição, naquele dia, mostrou para o povo que aquele político era um safado, que ele queria era enganar o povo. Agora entendo porque você sempre fala para eu estudar, entendo porque você sempre me leva para a escola, vê minhas tarefas e está sempre querendo saber das minhas notas. Um dia se outro político safado igual aquele aparecer aqui, vou fazer igualzinho você fez; vou calar ele.

O velho riu. Abraçou o neto e ambos foram para dentro de casa, atendendo ao chamado de que a janta estava pronta.