Dito Nove-Hora

Dito Nove Hora, o carroceiro que morava numa das apertadas e tortuosas poucas ruas que circundavam o cemitério. Dito era o diminutivo de quem sabe Geraldo, Raimundo ou Benedito mesmo. Mas seria mais difícil ser Benedito, pois esse nome geralmente era reservado, quase privativo, de afros, em razão da tradição, devoção e a

identificação com o Santo Padroeiro.

Mas Nove Hora, assim no singular, como explicar? Bem, quem conhece a

expressão "cheio de nove-hora", e ainda conhece o Dito, fica o dito pelo não dito, e nem precisa de mais escrito. Por outro lado, haverá alguém que não conheça a dita expressão? E aqui, nem me arrisco, ou perco tempo em ir ao Aurélio: quer dizer enrolador, embrulhador. Senão, não tá com tudo esse Aurelhão.

E foi ao Dito que fomos um dia. Papai descobriu que ele tinha uma bicicleta à venda, uma Gulliver verde, aro 28, com garupa e até um pneu meio-balão. No alpendre do dito Dito, piso de vermelhão, as tratativas se estenderam por um bom par de horas. Como o Dito era nove, ainda havia sete pra gastar. Juntaram-se uns vizinhos, e entre eles até o Jaú, que tinha também a sua bicicleta, uma Merckswiss, mal-ajambrada, mas que tinha a sua serventia, quando menos pra se exibir pras moças que adoravam ver um rapaz bem montado.

E papai acabou fechando o negócio, após o detido exame, o que não chegou a ser muito complicado. O ponto essencial foi de se certificar que a bicicleta não tinha solda, o que era indicativo de quebra no quadro e que, dizia-se, criava um defeito permanente: assim como o que havia se passado com a bicicleta do Jaú, tortinha da silva, a ponto de fazer o ciclista jogar-se para um lado a fim de estabelecer o equilíbrio da máquina. Olhamos, olhamos nas juntas e nenhum sinal de solda.

Não pude experimentar a bichinha apesar dos meus 15 anos e aquela vontade louca de montar porque não sabia. Fê-lo por nós o Jaú, aprovando sem restrições. Pra levá-la pra casa, que ficava praticamente a uma estirada de terreno, uma longa descida e uma meia subida, aí foi na mão mesmo, empurrando, mas com o senso da coisa quase possuída.

Já em casa, o negócio foi pedalar, usando a nossa rua, bem curta, mas ao menos plana. E pra surpresa de todos, Bebel, foi quem aprendeu primeiro, usando suas pernas longas e seu senso mais apurado de aventura. Eu levei mais tempo e em meio a ele, um tombo ao chocar a roda dianteira com a calçada. Menos o susto do que a vergonha. Dali pra frente, começamos a aprender a fazer curvas, mas bem mais devagar. E foi aí que achamos o que não nos dissera o Dito: na hora de se girar a roda da frente, se o pedal estivesse na posição dos ponteiros de um relógio às 9,15 aí o pé externo tocava no paralama dianteiro. Sinal de que a bichinha ou fora concebida de forma defeituosa ou que tivera o quadro encurtado por uma solda. O diabo é que a solda havia sido tão bem feita - e coberta, que não havia como fazer a prova dos nove. Do Nove Hora, pelo menos...

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 27/09/2014
Reeditado em 24/12/2020
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