432-DE MAL COM DEUS-Argumentações de um maçom

Coronel Militão era mesmo um homem decidido. Quando entestava com uma coisa, não havia nada que o fizesse desistir da empreitada ou mudar de idéia.

Agora, estava no fim. Acamado fazia três meses, desenganado pelo Doutor Taborda, pelo Ananias da Farmácia e por Zé-das-Ervas, aguardava inconformado pela visita da Ceifadeira. Mexia e remexia na cama, sem dar sossego nem à família nem a si mesmo. Não havia remédio, nem oração, nem palavra que tranqüilizassem o homem.

Quem fora um verdadeiro carvalho, altaneiro, forte, enfrentando com galhardia todas as tempestades da vida, estava ali, na cama, reduzido a um feixe de ramos, magro, as faces encovadas, os olhos sumidos nas órbitas; a voz rompante de outrora era um murmúrio sem força, quase inaudível.

Padre Ranzine, pároco de São Roque da Serra acompanhava, de longe e contristado, o lento calvário do Coronel. Não por ter ele sido um fiel devoto, antes pelo contrário, mas pelo sofrimento estampado no rosto enrugado da esposa, Dona Sinhaninha.

O Coronel nunca fora à igreja. Enredado, desde jovem, pelos maçons, tornou-se, senão um inimigo declarado da igreja e dos padres, pelo menos um adversário assumido. Assim fora por toda a vida. Entretanto, não impedia sua mulher de freqüentar a igreja, nem de fazer generosas doações.

— Padre, quero lhe pedir um favor.

— Fale o que deseja, dona Sinhaninha.

— Peço-lhe que vá visitar o Militão. O coitado já está no fim. Precisa de uma oração.

— Pois vou visitá-lo hoje mesmo.

Pelas cinco horas, lá foi o padre, munido da melhor das intenções, a proporcionar algum conforto ao moribundo. Levava água benta e óleo para a última unção, se o coronel admitisse.

Dona Sinhaninha já havia preparado o quarto e, com certeza, preparado também o marido para a visita.

Ao chegar, o padre foi levado ao quarto. As janelas abertas, a suave claridade da tarde e a aragem vespertina espantavam um pouco a sensação de proximidade da morte. Na cama, meio sentado, meio deitado, apoiado em almofadões e travesseiros, o Coronel até parecia animado. Aliás, quando viu o padre, seus olhos brilharam intensamente e uma energia diferente percorreu o corpo alquebrado, como que uma vontade de enfrentar pela última fez um desafeto.

Padre Ranzine começou falando suavemente.

— Pois então, coronel? Parece estar melhorando?

— Qual o quê, seu padre. Não demoro muito pra desocupar o beco. Bater as botas. Ver como são as coisas do outro lado. Dar um abraço no Grande Arquiteto.

— Pois é, coronel... Mas, antes, ainda dá tempo de fazer as pazes com Deus.

O Coronel reuniu os últimos alentos para falar com voz autoritária:

— Ora essa, seu padre! Então Deus está de mal comigo? Pois não me consta que nóis dois brigamos. Não, senhor! Mas, comigo num tem problema. Como num posso sair daqui, o senhor tá vendo, manda Deus vir aqui, falar comigo cara a cara. Então, ele pode falar o que tem contra mim e a gente resolve tudo que tiver pendente da parte dele.

ANTONIO GOBBO –

B.Hte., 13 de maio de 2007

Conto # 432 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 26/09/2014
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