424-BRIGA DE RUA-Enre garotos-Autobiográfico

Quando os garotos foram separados da briga, nem eles sabiam responder às perguntas dos dois homens que os prendiam pelos braços.

— Parem, meninos. Parem com esta briga.

— Mas, que é isso? Por que vocês estão brigando?

Toninho, afogueado, as faces vermelhas como pimentão maduro, quer se libertar das mãos fortes que o prendem. Da mesma forma Zequinha, suado, cabelos desgrenhados, tenta escapar das manoplas do outro homem. Ambos querem continuar a luta.

São arrastados cada qual para um lado da calçada. Mesmo assim, trocam ameaças.

— Ainda te pego, desgraçado!

— Vem, se ocê for homem!

— Meninos, parem com isso. — Seu Zito. o dono do açougue, de facão em punho, assoma à porta do estabelecimento, uma figura ameaçadora. — Peguem a carne e vão embora!

O entrevero acontecera defronte ao Açougue Nossa Senhora Aparecida. Os garotos eram colegas de classe e aconteceu de chegarem juntos para comprar carne. Eram sete horas da manhã de um sábado e o açougue estava cheio. No afã de serem atendidos, os meninos se desentenderam, empurra pra cá, empurra pra lá, quando Toninho saiu correndo e Zequinha foi em sua perseguição. No meio da rua, os dois se engalfinharam. Na rua de cascalho as pedrinhas brilham ao sol da manhã. Não houve dois sinais, quando se viu, os meninos rolavam pelo chão, agarrados. Puxavam mutuamente as roupas, os cabelos e havia tentativas de mordidas. Não davam socos nem pontapés, era uma briga de crianças. Nem sabiam direito como se atacar ou se defender. E sem palavrões. Ouvia-se, isto sim, o arfar e gemidos sufocados, ora de um, ora de outro. E não se largavam nem um instante.

Antes que os fregueses notassem a briga, os garotos já haviam rolado meia dúzia de vezes pelo chão, ora um por cima, ora outro. Braços e pernas já mostravam os arranhões. Os cabelos revoltos, sujos de terra. Da testa de Toninho, um raspão maior estava vermelho de sangue. Do nariz de Zequinha escorria alguma coisa da cor da terra.

Separados, Zequinha, que estava na calçada defronte ao açougue, preso pelas mãos de Totó Miranda, foi o primeiro a pegar a carne sem pagar: as compras eram anotadas num caderno ensebado e liquidadas mensalmente. Dependura o fio de barbante pelo dedo e sai.

Só depois que Zequinha vira a esquina, Camilo Doceiro solta Toninho. Este chega ao balcão, apalpa os bolsos antes de pegar a carne.

— Perdi o dinheiro. — Fala, quase chorando.

— Procura aí na rua, deve ter caído do bolso. — O açougueiro segura a carne, sem entregar.

Toninho volta à rua e abaixa-se uma, duas, três vezes.

— Tá aqui o dinheiro. — Entrega as moedas e pega a carne, saindo em direção oposta à tomada por Zequinha.

Eles sabem, sim, porque brigaram. A coisa era antiga. São colegas de escola, freqüentam a mesma classe do terceiro ano primário. Têm a mesma idade, dez anos. O mesmo porte, sentam-se na mesma carteira dupla na sala de aula. Aliás, sentavam-se. Uma antipatia mútua estabeleceu-se entre os dois desde os primeiros dias de aula, três anos antes, lá no começo do primeiro ano. Nunca se deram bem. A antipatia transformou-se em rivalidade quando os dois começaram a disputar a classificação pelas notas. . Não eram os melhores alunos mas disputavam o sétimo e oitavo lugares, como se fosse a maior façanha.

Depois, aconteceu a história do livrinho de Zequinha que Toninho pedira emprestado. Perdera o livro e, portanto, jamais poderia devolvê-lo. Zequinha nem sabia mesmo porque emprestara “As aventuras de Dick Tracy” ao seu desafeto. Era pequeno, com quase 200 páginas, em que as peripécias do detetive aconteciam em quadrinhos com textos ao lado. Toninho, louco por gibis e histórias em quadrinhos, bolou um “negócio”. Ofereceu algumas figurinhas de jogar bafo por um empréstimo de alguns dias.

Toninho não sabe explicar como perdeu o livro de Zequinha.

— Olha, se ocê num me dar de volta o livro vai contar pra Dona Alicinha que você não quer me devolver.

— Já te falei que o livro sumiu. Juro.

— Mentira. Cê num quer devolver, isso sim.

O livrinho sumira de verdade. Mas Zequinha não delatou o colega à professora e acabou “ficando por isso mesmo”. O que não impediu que a antipatia e a rivalidade entre os dois desandassem em inimizade.

A desavença no açougue do seu Zito fora a gota dágua.

Todavia, o pior mesmo para Toninho foi quando a mãe, já no final do ano, alguns meses após a briga de rua, revirando uns cadernos velhos guardados no fundo do armário de bugigangas, para jogá-los no lixo, deparou com “As Aventuras de Dick Tracy”.

— Aqui está, seu desmazelado, o livro que você tinha perdido. — A mãe reprimenda-o. — Vai ter de devolver pro seu colega. E antes de começarem as férias.

Sem jeito, tremendo de receio e de medo, lá vai o garoto com “As Aventura de Dick Tracy” dentro da pasta de couro. Antes do intervalo das nove horas, fica pensando como vai devolver o livro. Ele não vai acreditar que o livro tava perdido, vai me xingar e pode até me bater...

O sinal toca para o recreio. Antes da saída da classe, Toninho chega perto de Zequinha e coloca o livro sobre a carteira.

— Taí, achei o livro do Dick Tracy.

Zequinha nem presta atenção. Responde com visível desprezo:

— Ara, seu bestinha, num quero mais não, pode ficar com ele.

E sai da sala, deixando Toninho realmente com cara de bobo.

Antonio Gobbo

BH, 19 de fevereiro de 2007

Conto # 424 da série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 24/09/2014
Reeditado em 24/09/2014
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