HELENA

O trânsito lento da BR 116 em direção norte, rumo à capital paulista estava lento. Um acidente na Serra do Cafezal, o único trecho da rodovia entre São Paulo e o Vale do Ribeira sem pista dupla, provocou a lentidão. Um vai-e-para constante. Às vezes, demorava até dez minutos parado atrás de caminhões. Era uma pista perigosa porque, além das curvas acentuadas, não havia espaço para fuga nos acostamentos.

Ele precisava estar em São Paulo antes do almoço por isso havia saído de casa bem cedo. O sol ainda não havia despontado no horizonte e ele já estava na estrada. No período da tarde haveria uma reunião de representantes comerciais que atuavam no estado paulista no ramo de refrigerantes. A tarde toda. Dependendo da didática do palestrante, seria uma longa e entediante tarde. Depois, bem, depois ele procuraria um programa para aliviar todo o estresse e voltar para casa calminho, bem calminho.

Entre uma parada e outra ele buscava na exuberante natureza um momento de distração. Árvores frondosas, típicas da Mata Atlântica, enfeitavam a paisagem. Entretanto, vira e mexe era interrompido do seu enlevo por algumas batidas no vidro do carro. Do lado externo da pista passavam vários vendedores. Água, refrigerante, biscoito de polvilho e chocolates. Exceto os refrigerantes, todos de procedência ignorada. Fato comum na beira da Régis Bittencourt, onde os acidentes eram constantes e mais constantes ainda eram os saques das mercadorias tombadas. Muitos lavradores deixavam de trabalhar na sua roça para roubar as mercadorias. Fossem elas seguradas ou não. Pouco importava. A lei da sobrevivência se sobrepunha ante a lei do estado de direito. Direito mesmo era não morrer de fome.

No rádio do carro um som sertanejo ajudava o tempo passar.

Volta e meia, entre uma parada e outra, seu pensamento fugia da paisagem e se perdia nas brumas do passado.

Era uma manhã fria. O vento açoitava os galhos das árvores arrancando algumas folhas amarelas sobreviventes ao inverno seco. Dentro do carro não sentia frio, mas dentro dele próprio uma lembrança congelava seus pensamentos.

Sua filha Helena nascera em uma manhã de inverno. O vento frio e cortante sempre lhe trouxera saudades dela. Inverno e Helena. Helena e inverno. Sua filha do primeiro casamento. “Por onde andaria Helena?”

Depois da separação nada consensual, com brigas sobre a guarda da criança e o pagamento da pensão, vira a filha pouquíssimas vezes. Não por sua vontade. Toda vez que buscava a filha para um passeio, era motivo de briga com a ex-mulher. Era um revirar de cadáver constante, sempre buscando do fundo da terra os erros cometidos pelo então marido. Para evitar estes momentos de guerra, acabara se afastando da filha. De vez em quando, em épocas de aniversários ou datas especiais como Páscoa, Natal e Dia das Crianças ele ligava e mandava um presente para Helena.

Certa ocasião deu à filha uma camisa com a estampa da Turma do Carrossel, novela infantil que passava na televisão. Era uma coisa que a menina sempre quisera ter. Para uma surpresa recebeu uma encomenda dos Correios enviada pela mãe. Dentro da caixa a camisa toda estraçalhada. Parece até que foi rasgada com os dentes. Os dentes da fera. A fera que ele conhecia muito bem. Isso tudo quando ela, Helena, a maior paixão da sua vida, tinha apenas sete anos e mal sabia as primeiras letras. Entretanto, dentro da mesma caixa, um bilhete. Um pedaço de papel almaço rasgado e uma mensagem nunca esquecida em letras de forma irregulares, garranchos de uma criança que mal sabia pegar no lápis: “Pai, não me procure mais. Vamos aprender a viver sem você, Helena!”

Após várias tentativas, várias ligações telefônicas, nenhum contato. O silêncio se prolongou por muitos e muitos anos. Quando a menina completou dezoito anos de idade, o pai entrou na justiça para não mais pagar a pensão, pois ficara sabendo que a ex-esposa estava vivendo maritalmente com um companheiro em uma relação afetiva. Achou também que a menina não precisava mais dele. Se não queria contato, não precisava de seu dinheiro.

Por intermédio de uma tia da ex-companheira soube que Helena fora estudar Direito na capital. Depois de um tempo nem mesmo a mãe dela sabia do paradeiro da filha. Um chá de sumiço total.

Por mais durão que tentasse demonstrar; por mais insensibilidade que aparentasse, no fundo, no fundo, sentia uma falta imensa da filha. Ainda trazia na memória os primeiros dias, os primeiros banhos e até a descoberta de uma mancha particular no lado esquerdo da recém-nascida em um formato que lembrava uma borboleta. Por isso, sempre chamava a filha carinhosamente de “Borboletinha”. A mesma mancha que ele tinha, só que a sua era do lado direito.

Hoje estava no segundo casamento. Tinha um filho que sempre o acompanhava aos campos de futebol. Mas não dava para esquecer a primeira filha: “Por onde andaria a sua Borboletinha?” “Será que ainda estava estudando na capital?”

Em muitas noites insones, a sua atual companheira o encontrou encostado na janela do quarto fitando o vazio. Absorto. No dia em que a filha fazia aniversário, ele chorava. Chorava também nos dias dos Pais. As datas festivas eram-lhes um tormento.

Na BR 116, a Rodovia da Morte, o trânsito evoluiu.

Preocupado com a direção, momentaneamente esqueceu-se da filha.

Todavia, a pergunta que não queria calar:

“Por onde andaria a Borboletinha?”

São Paulo se avizinhava.

Depois de uma tarde longa e chata, a noite desceu seu manto negro sobre a capital dos paulistas. Hospedado no Hotel Maximilian, chegou da reunião, tomou um banho bem quente, assistiu a alguns jornais e antes das dez horas da noite, ligou para a recepção procurando seus amigos de empresa. Eles estavam dando uma festinha à fantasia no andar de baixo. Pelados e peludos acompanhados de algumas meninas. Acompanhados de “acompanhantes”!

Quando entrou percebeu que todos usavam máscaras. Apenas com a roupa de baixo e meias, colocou uma máscara do Zorro e, entre bebidas, beijos e abraços, ele também entrou na festa.

Eram garotas bonitas, de rosto e de corpo. Segundo a recepção, eram garotas finas, bem educadas que faziam aqueles programas para pagar a faculdade. Algumas eram até formadas, mas continuavam na atividade. Para algumas delas, não era mais por necessidade e sim por vontade.

Procurando por uma que estivesse disponível, desfilava por entre sofás e cadeiras quando uma morena lhe chamou a atenção. Era de uma beleza estonteante, cabelos negros e rebeldes. Um corpo escultural. A jovem, de costa para ele, estava sentada no colo de um de seus amigos trocando carícias.

De repente, ao passar pela menina, algo lhe chamou a atenção. Na lateral esquerda do abdômen dela, uma tatuagem em forma de borboleta. Não, aquilo não era uma tatuagem. Era uma mancha de nascença. Semelhante à sua.

Mesmo de máscara, tocou nos ombros da acompanhante que lhe olhou, surpresa. Conhecia aquele olhar. Desde criança conhecera aquele olhar profundo, penetrante, que vasculhava a alma de quem por ele era observado. Não teve dúvida. Apenas disse:

“Oi, Borboletinha!”

“Oi, pai!”

...

O jornal Notícias Populares do dia seguinte estampava como manchete:

“HOMEM MORRE AO SE ATIRAR DO 20º ANDAR DO HOTEL MAXIMILIAN!”

Jonas De Antino
Enviado por Jonas De Antino em 23/09/2014
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