421-TORCIDA ORGANIZADA-Briga no estádio, crime na rua
Acordou. Deitada de costas, coberta por lençol, com dores por todo o corpo. Olhou ao redor. Tudo branco. Um hospital? Estou num hospital? Ao seu lado, um suporte com saquinho de soro, do qual um tubo plástico chegava até o braço direito. Tentou movimentar o braço esquerdo. Uma dor aguda começou no cotovelo e, subindo pelo ombro, se espalhou por todo o corpo. Minha Santa Rita, como é que vim parar aqui?
Fechou os olhos, tentou se lembrar. Aos poucos, os últimos registros da memória vieram à tona de sua consciência. Num sentido inverso, foi-se lembrando da pancada que recebeu na cabeça. Dos gritos da multidão, da irmã puxando-a pelo braço, enquanto ela tentava fotografar, com o celular, a confusão na qual estava metida. O soldado aproximou-se com aquele longo pau e foi batendo em todo o mundo. As imagens desfilando em sua memória: A torto e a direito. Sem a boina. Respingos de sangue na testa. Um olhar furioso. E o pau descendo. Um homem cai ao meu lado. “Me dê a mão, Dilma!”
Diana passou a mão sobre o barrigão. Sentiu o pulsar da vida em seu interior. Graças a Deus! Cansada, virou o rosto no travesseiro e adormeceu.
Nem mesmo o comandante do grupo de policiais encarregado da segurança no pequeno estádio sabia explicar como tudo começara.
— Estamos acostumados a lidar com muitos eventos aqui em Nova Manga. A gente sabia que viriam muitos torcedores do Cruzeiro, mas eles não cabiam no espaço que lhes fora reservado. Invadiram a larga faixa que os separava dos torcedores locais. A briga estourou e os policiais entraram para separar os torcedores. Torcidas organizadas. Os assistentes desceram para o campo e agrediram um bandeirinha. A partir daí, a confusão se generalizou.
Os policiais usaram tudo o que podiam para conter os membros da “Pele Vermelha”, em briga violenta com os torcedores do time da Raposa. Bombas de gás, soldados da cavalaria, os longos cassetetes e tiros com balas de borracha. O primeiro roud da briga terminou antes mesmo do intervalo do primeiro tempo do jogo, com a partida empatada em 1 a 1.
— Diana, é melhor a gente ir embora. — Dilma aconselhou a irmã. — Não é nada bom você aqui, com esse barrigão de sete meses, no meio da multidão enfurecida.
— Não, Dilma, a turma já acalmou. Num tem perigo.
As duas eram torcedoras entusiasmadas do Leão. Estavam no meio da torcida, aonde dificilmente a confusão chegaria. Diana não poupava gritos de entusiasmo dirigidos principalmente a Ricardinho, o marido, que estreava no time. Após muitos meses de treino e banco de reserva, o técnico dava uma oportunidade ao novo jogador.
A entrada dos jogadores para o segundo tempo foi ovacionada e vaiada, ao mesmo tempo, por todos os torcedores. Os berros, xingos e insultos seguiram-se entre os componentes das duas torcidas, agora bem mais próximas, devido ao grande numero de torcedores no pequeno estádio.
Não demorou nem quinze minutos de jogo quando novamente uma briga estourou nas arquibancadas. Os torcedores, exaltadíssimos, se engalfinharam para valer. Os policiais chegaram com mais disposição para acabar com a baderna. A multidão toda ao redor do estádio, num determinado momento, estava em pé de guerra, aos berros. Mais bombas de gás. Mais soldados da cavalaria desancando o povo. Um menino foi atingido por uma bala de borracha na perna; um homem caiu, caceteado na cabeça, ao lado de Dilma.
— Corre, Diana, vamos sair daqui!
— Me dê a mão! — Foram as últimas palavras de Diana, antes de receber uma pancada na cabeça.
Uma clareira se abre ao redor dos dois corpos estendidos no chão. De um lado, torcedores recuando, exaltados, de outro policiais avançando, ameaçadores. No centro, Diana, de bruços, a cabeça ensangüentada, os braços abertos. O outro homem já se levantava, meio tonto, para fugir da confusão. Dilma tenta voltar, quer chegar até a irmã, mas é impedida pelos soldados. Chegam homens com uma padiola, na qual a mulher desmaiada é colocada.
— Nem o prefeito escapou. — Afirmou um torcedor da organizada “Pele Vermelha”. — Vi quando um policial deu uma gravata nele. Bem feito! Quem tá no meio da gente, tem de estar preparado pra matar ou morrer.
A dramática serie de fotografias dos entreveros no estádio (aliás, conhecido por “Alçapão”, dada à precariedade do sistema de proteção) foi publicada nos jornal O Tempo da segunda-feira. Entre os quadros, duas dramáticas tomadas mostram o momento exato em que um soldado, em primeiro plano, descia o cassetete num homem, e a segunda, mostrando uma mulher desmaiada, de bruços, no centro de uma clareira, cercada de policiais e torcedores.
Ricardinho chegou ao hospital assim que foi liberado da partida, que terminara antes do tempo regulamentar. Dilma viu quando a irmã fora colocada na ambulância, e informara o cunhado.
— Meu Deus, como é que isto foi acontecer? — Desesperado, passa as mãos pelo rosto, braços, sobre os seios e a barriga da esposa. — Podia ter perdido a criança.
— Calma, Dinho, já passou. Estou bem.
Mas o pior para o casal estava por vir. Complicações advieram e Diana teve de se submeter a uma cesariana. A criança não nasceria com vida.
Ricardinho mergulhou num abismo de tristeza. Diana foi forte, enfrentou com galhardia a perda, mas o marido não a acompanhou. Os primeiros dias, licenciado no clube, passou em casa, chorando pelos cantos, procurando (e não conseguindo) esconder as lágrimas da mulher.
— Meu bem, nós continuamos vivos. Vamos ter mais crianças, você vai ver.
Ele não se animava. Surdo aos sinais de esperança da mulher, macambúzio a cada dia que passava. Foi ficando obcecado por uma idéia. O jornal com as fotos da tragédia estava já com as folhas amassadas, de tanto manuseio. O jovem jogador parecia fascinado, morbidamente atraído pelas fotos.
— Conheço este soldado que te bateu. — Falou um dia para Diana, passadas algumas semanas.
— Querido, esquece. Joga este jornal fora.
— Vou matar esse desgraçado. — A tristeza do rapaz se transformara em ódio.
— Minha Santa Rita! Que pensamento é este! Vem, querido, vamos sair, distrair.
Acontecia com o casal justamente o contrario. A mulher, meses depois, estava otimista,
bem disposta, até alegre — talvez procurando elevar o ânimo do marido, sempre em baixa. Ele, entretanto, mergulhava cada vez mais no vórtice de dor e amargura, que o sugavam para baixo, para o fundo.
Seu desempenho no time caiu verticalmente. O técnico e o diretor de esportes estavam de acordo na rescisão do contrato do rapaz. Não houve sequer o cuidado de lhe dar uma licença, ou uma oportunidade, alguns meses depois.
Obcecado pela tragédia, inutilizado profissionalmente, esquecido pelos torcedores, tudo o que tinha em sua mente era canalizado pelo ódio ao agente causador da “sua” desgraça: o policial da fotografia.
Vou matar esse desgraçado. — A idéia se fixou em seu pensamento.
O soldado foi encontrado morto próximo de sua casa, fora de serviço. Assassinado com dois tiros certeiro, à queima-roupa. Não havia pistas.
— Não sabemos a causa do assassinato do soldado Leônidas. — Declarou o comandante da PM. — Pode ser vingança, pode ser tudo, pode ser qualquer coisa.
Diana, por um dessas incríveis coincidências, que só aparecem em crônicas fantásticas, viu a notícia, com a foto, do policial assassinado. Assustou-se. Nada disse ao marido, mas comentou com a irmã.
— Estou com medo de que Ricardinho tenha feito a besteira de que tanto falou. Ele continua com aquela idéia maluca...você sabe...
— Sim, eu compreendo. — Dilma sabia de tudo, pois as irmãs eram amigas, confidentes, “unha e carne”, como se diz.
Uma semana depois, dois policiais batem à porta da casa de Ricardinho. Diana atendeu.
— Seu Ricardo Santos está?
— Sim.
— Viemos buscá-lo.
— Quem são os senhores?
— Da polícia. Viemos prendê-lo. É suspeito da morte do soldado Leônidas dos Anjos.
ANTONIO GOBBO – Belo Horizonte,
6 de Fevereiro de 2007
Conto # 421 da Série Milistórias.