NÃO QUERO FILHOS

Como estou cansado! Nada como morar em uma cidade que me proporciona o que há de melhor. Precisarei ficar ainda uns dias de repouso, portanto nada como alguns livros e Cds novos. Vou aproveitar para ouvir muito jazz, clássicos, MPB e ler os tão divulgados escritores africanos. Fiz boas aquisições: Mia Couto, Ondjaki, Agualusa e um maravilhoso livro do Cony. Serão duas semanas ótimas. Estou precisando mesmo descansar e dar uma boa relaxada.

- Lúcia, querida, cheguei.

- Como foi a viagem, querido?

- Cansativa, como sempre. Mas consegui alguns dias de folga na universidade e aproveitarei para ficar em casa e descansar. Vou ler, ouvir música e ver alguns filmes que comprei e ainda não tive tempo de ver. Eu mereço este descanso. Como você está?

- Eu estou bem. Aproveitei que você não estava aqui e fui fazer alguns exames médicos.

- Você está doente? Está sentindo algo? Por que não me falou antes, eu poderia adiar a viagem?

- Nada demais, coisas rotineiras.

- Melhor assim.

- Como foram as palestras?

- Ótimas, com sempre. Não entendo o que acontece no Brasil, pois, nos demais países, os alunos são dedicados, interessados e interagem muito. Mas isso é coisa para o governo corrigir, e não eu.

Vou tomar um delicioso banho para relaxar. Depois poderemos pedir algo para comer e conversaremos mais.

Assim que saiu do banho, Ricardo colocou um roupão, pegou refrigerante, cigarros e ligou o som da sala.

- Querida, sua tia melhorou?

- Que nada! Eu e meus irmãos estamos achando que ela está ficando esclerosada e com mania de doenças. Mas não podemos esquecer que os anos de psicotrópicos acabam causando danos. Ricardo, preciso lhe falar.

- Sou todo ouvido.

- Nem sei por onde começar. Acho que te causarei um imenso aborrecimento.

- É tudo o que preciso no momento. Eu realmente desejava retornar para casa e me aborrecer.

- Não seja irônico e nem ranzinza.

- Eu já te disse que não arrumei uma parceira para me encher de aborrecimentos. Diga logo o que há?

- Estou grávida.

- Puta que pariu, Lúcia, eu acho que deixei bem claro que não quero filhos. E disse antes de assumirmos uma união, portanto não te enganei em momento algum. Que saco! Odeio crianças e todo o amor que eu tinha por filhos já foi dedicado às minhas amadas irmãs, que Deus achou lindo me tirar. Sabe que, para mim, só existiram duas crianças, as minhas irmãs. Perdi uma tão cedo e a outra eu criei, amei, eduquei, fui pai, mãe e conciliador dos conflitos dela com papai e mamãe. Nunca imaginei que os céus estavam tramando para me dar outro golpe de misericórdia. Eu não quero essa criança. Posso até sustentá-la, mas jamais assumirei o papel de pai e não será possível mantermo-nos juntos. Nossa união acaba aqui. Só me faltava essa.

- Mas, Ricardo, eu não tenho culpa, nunca tive a intenção de engravidar sabendo sua posição radical em relação ao assunto.

- Radical uma ova. São resultados das circunstâncias que a “maravilha” de vida me legou. Ou será que a pílula que você está tomando era placebo?

- Não seja irônico. E, além do mais, mesmo que eu não queira, posso abortar.

- Nunca mais repita isso. Você sabe que sou contra o aborto. Isso só me faria desprezá-la. Mas eu estou fora.

- Quer dizer, então, que nosso casamento acabou?

- Você não pensou que eu fosse voltar atrás das coisas nas quais sempre acreditei porque a senhora decidiu ser mãe? Que seja, mas bem longe de mim. Já lhe disse que não deixarei que nada de material falte a você e seu filho.

- E eu que achei que você pudesse rever suas ideias. Sou mesmo uma idiota.

- Com certeza! E, além do mais, eu não fui à França para dar palestra alguma. Fui a São Paulo fazer uma vasectomia, que deveria ter feito há anos. Parece que eu estava prevendo uma traição como esta.

- Traidor é você! Como teve a coragem de fazer uma operação sem me falar antes?

- Para quê? Esse era um problema exclusivamente meu. E, além do mais, eu não sei se confio em ninguém para algo tão meu, tão íntimo. Muito menos em uma mulher, que é um ser cheio de artimanhas.

- Você é um cretino e eu te odeio.

- Lamento, mas não posso fazer nada quanto a isso.

- Eu vou entrar na Justiça e exigir meus direitos.

- Que direitos? Moramos juntos há apenas um ano e você não tem direito a nenhum dos meus bens. Como não pretendo registrar criança nenhuma, nem pense em fazer palhaçada, pois já lhe disse que os ampararei financeiramente. Mas se pensa em agir dessa forma, não darei nada, pois você tem um bom emprego. O máximo que pode conseguir de mim é, através do DNA, provar que a maldita criança seja minha. Nesse caso, a pensão seria bem menor, pode acreditar.

- Ricardo, reveja sua forma de pensar. Uma criança pode ser um bálsamo sobre suas feridas. Virá substituir suas irmãs.

- Não fale besteiras. Ninguém poderia substituí-las.

- Então você é mesmo uma pessoa obtusa, por permitir que duas defuntas interfiram em sua vida.

- NUNCA MAIS SE REFIRA A ELAS DESSA FORMA. Obtusa é você por achar que eu iria adorar sua gravidez. Que ódio!

- Não quebre nada, não destrua nosso apartamento.

- Quebro o que quiser, pois fui eu que o mobiliei. Aliás, o imóvel é meu.

- Não faça isso, você está operado. Todo esse esforço pode fazer-lhe mal.

- Quebro tudo para não quebrar sua cara. Aiiiiiiiiiiiiiii!

- Ricardo o que foi? Há sangue por toda parte. Meu Deus, a cirurgia .... Vou ligar para pedir uma ambulância.

Alô, é da clínica do dr. Luciano Chagas? Por favor, envie uma ambulância urgente. Meu marido está muito mal, perdendo muito sangue. Diga ao dr. Luciano que é a Lúcia de Almeida. É uma emergência!

Ricardo, você está me ouvindo? Desmaiou, mas ainda sinto a pulsação. Sou uma enfermeira, há algo que eu possa fazer. Só terei que ser rápida. Aonde coloquei meu bisturi? Bastará um aprofundamento do corte e ...

- Lúcia, o que está fazendo? Ai, que dor! Oh, vocês estão aí? Que saudade! Minhas lindas irmãs, como me fizeram falta! Me sinto leve, livre, feliz. Que luz forte! Deixem-me segurar as mãos de vocês, meus grandes amores, minha vida, meu tudo ...

-Estão batendo na porta. São eles. Já vou.

Por aqui senhores. Oh, dr. Luciano, que bom que veio junto. Quanta gentileza!

- Minha querida, o Ricardo era um irmão para mim. Eu precisava vir pessoalmente para examiná-lo. Onde ele está? Na cama?

- Não, está aqui mesmo, no outro canto, caído no chão.

- Como enfermeira espero que tenha prestado os primeiros socorros, tentado estancar o sangue, ou mesmo suturado o que foi rompido. Eu mesmo o operei e não estou entendendo o que deu errado.

- Ele teve um ataque e começou a chutar tudo, a atirar os móveis longe, a socar as paredes.

- Ataque? Me perdoe, mas o conheço muito bem e Ricardo sempre foi muito equilibrado, mesmo com as tragédias que se abateram sobre ele. Algo está errado. Não percamos mais tempo, ele corre risco e preciso socorrê-lo imediatamente.

- Doutor, ele está morto – disse o enfermeiro

- Impossível. Uma hemorragia decorrente de uma cirurgia dessas não mata ninguém. Ainda mais se o sangramento foi estancado a tempo.

- Não há sinal de sutura ou de qualquer tentativa de estancamento do sangue. Lúcia, pelo amor de Deus, o que houve aqui? Por que não o socorreu? Deus, que corte é esse aqui? Você o matou. Matou meu irmão, meu melhor amigo. Claro, você nunca poderia imaginar que havia sido eu a fazer a operação e poderia argumentar que ele foi mal operado e culpar o suposto cirurgião. Amadeu, ligue para a polícia imediatamente, em meu nome, e diga que houve um homicídio. Paulo e Luís, segurem-na para que não fuja.

- Me soltem. Vocês são uns brutamontes. Como pode me acusar dessa forma? Não tem como provar.

- Tenho sim. Eu fiz a cirurgia e minha equipe poderá comprovar que esse corte não existia. Como você é pérfida! O perfurou até o local onde sabia estar a sutura feita por mim. Mas você vai pagar, e caro, pelo que fez.

- Doutor, a polícia chegou.

- O que houve aqui Luciano?

- Ciro, essa mulher odiosa matou um paciente meu que foi operado há dois dias. Ela é enfermeira e sabia exatamente o que estava fazendo.

- Coloquem as algemas na criatura e levem-na para a delegacia.

- Essa foi a coisa mais triste que me aconteceu. Logo com o meu melhor amigo.

Vou resumir o desenlace do episódio que destruiu a vida do meu irmão do coração. Meu nome é Luciano, sou médico e fiz a vasectomia no meu amigo Ricardo, um homem saudável que jamais morreria se não fosse vítima de uma mulher perversa e vingativa.

Ricardo perdeu as duas irmãs. Uma de cada vez. Quando a mais velha morreu, tinha apenas 10 anos e a outra ainda não havia nascido. A primeira foi vítima de uma doença renal congênita. A segunda, a quem ele se dedicou de corpo e alma, se matou aos 20 anos, vítima de uma forte depressão. Ele nunca mais quis saber de criança, o que é normal em casos como esse.

Ricardo tinha somente 40 anos e morava há um ano com Lúcia. Quando ela foi presa, acabou confessando o crime. Um verdadeiro monstro carregado de ódio e sede de vingança. Ela não estava grávida e sabia que ele havia se submetido a uma cirurgia, pois mexia em suas gavetas e havia lido meus pedidos de exame, onde constavam que ele se submeteria a uma vasectomia. Era a oportunidade de concretizar sua vingança. Enquanto ele estava internado, Lúcia teve tempo de tramar tudo. Ela sabia que a única coisa que o tiraria do sério era a probabilidade de uma gravidez.

Mas esse monstro não contava que ele a ajudaria ao perder a cabeça. Em seu apartamento foi encontrado sonífero e ela disse que o faria dormir, quebraria muitas coisas na sala e depois o submeteria à um corte fatal que, feito profundamente, romperia a sutura feita por mim. Mas o destino a ajudou e o próprio Ricardo perdeu a cabeça e acabou como todos já sabem.

O motivo de tanto ódio? A segunda irmã do Ricardo era, na verdade, irmã dela. Quando a menina nasceu, a mãe paupérrima entregou-a a um casal que havia perdido a filha recentemente. Só que a menina era filha do pai adotivo e, mais tarde, ela soube que a esposa do amante de sua mãe a obrigara a entregar a enteada. Após isso a mãe foi definhando e morreu. O resto o leitor poderá deduzir.

Campos dos Goytacazes, 23 de setembro de 2014 – 10:46 horas

Emar
Enviado por Emar em 23/09/2014
Reeditado em 23/09/2014
Código do texto: T4972988
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