420-CONSERTEI O CAMA -Um dia de cão na minha vida

CONSERTEI A CAMA

Aquele, sim, foi um dia de cão.

Cheguei atrasado ao trabalho, na agência do banco Royal, devido ao trânsito difícil. Um temporal na madrugada havia inundado ruas, apagado semáforos, derrubado árvores na região da Pampulha.

— Temporal? De madrugada? Pois no meu bairro até faltou água. — Debochou o chefe, anotando o atraso na folha do ponto, com caneta vermelha.

Mais tarde, o chefe me avisou:

— O Marqueta vem trabalhar na nossa seção.

— O Marqueta? Pombas, seu Nilo, aquele cara é um chute no saco. Não conheço ninguém mais chato. Que é que ele vem fazer aqui?

— Te ajudar na atualização do Fundo de Garantia.

— Mas, chefe, o serviço tá quase pronto. Me dá mais uma semana e termino o trabalho.

— Estão me pressionando da gerência. Pedi um funcionário, vão mandar ele pra cá.

Cheguei logo a uma dura conclusão.

— Seu Nilo, ele é mais antigo no banco que eu. Vai ser seu substituto no cargo.

O Banco Royal não tinha, na década de 50, uma estrutura organizada, um quadro de pessoal, como hoje. As substituições nos cargos, importantes para as promoções, se davam por antiguidade no banco. Competência, como era o meu caso, não contava.

— O Marqueta Xereta? — Perguntou Josué, que ouvira a conversa e metia sua colher no assunto. — Estamos bem arrumados.

— Você não precisa se preocupar... — O chefe tentou explicar.

— Já ouvi essa lenga-lenga antes. — Falei, interrompendo-o.

Marqueta apareceu após o almoço. Veio e se aboletou numa escrivaninha ao meu lado, para me “ajudar” — e chegou com ares de “sabe-tudo”.

Agüentei quanto pude, mas a discussão foi inevitável. Aconteceu pelas três horas. Foi tão desagradável que perdi a calma, e o bate-boca só terminou quando gritei com Marqueta:

— Vá te fuder, Marqueta Xereta!

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Haveria mais pela frente. Meia hora depois, Sônia chegou perto da mesa e me falou:

— O diretor tá te chamando.

Olhei constrangido para a moça, que era encarregada de dar os recados no segundo andar.

— Venha comigo. — Os colegas se olharam, tão assustados quanto eu. Levantei-me e ao sairmos da seção, ela me explicou:

— Lá na portaria tem um cara com o “diretor”. Ele quer falar com você.

Dei-me conta do meu engano e me acalmei. “Diretor” era o apelido do Carlão, contínuo metido a importante, cuja empáfia lhe valera aquele tratamento.

Cheguei à portaria.

— Este senhor quer te cobrar o conserto da cama. — Me explicou o “diretor”, apontando para um homem loiro, alto, rosto vermelho, gordo e todo suado. Quando me aproximei, ele falou cm forte sotaque (alemão ou qualquer língua daquelas falada por gringos. Não sou bom em línguas.) :

— Conserrtei o seu cama. Querro pagamento. — ele disse,

— O quê? — Estranhei o homem e o pedido. — Que cama?

— Consertei a cama parra sua mulherrr.

— Que cama? Que mulher?

— Conserrtei a cama. — Ele repetiu, num tom de voz uma oitava mais alto. O pessoal da portaria me olhou. Carlão fez “tsc, tsc, tsc”. Não sei se de gozação ou reprovação.

— Que cama, seu? Não é comigo não. O senhor tá enganado.

— Conserrtei a cama. — Ele repetia como um disco defeituoso. E acrescentou: Vinte cruzeirrros.

Estava claro que havia um engano. Entretanto, para ganhar tempo e falar sem medo de errar, expliquei ao alemão (agora, sabia com certeza):

— Vou telefonar para minha mulher. Mas estou certo de que o senhor errou de pessoa. — Fui saindo, ele me segurou pelo pulso direito.

— Conserrtei a cama. Vinte cruzeirros.

— Sim, sim. Dois minutos, tá bem? — Indiquei com os dedos da mão esquerda, para mostrar que voltaria logo. O Fritz parece que não gostou do meu sinal e segurou mais forte o pulso, Tive de dar um safanão para me livrar da manopla.

— Conserrtei cama. Vinte...

Saí correndo, voltei à minha seção. Expliquei ao chefe o quiprocó e telefonei para Constância, minha mulher, explicando. Ela me respondeu como se tivesse duas pedras na mão.

— Cê endoidou, Dinovaldo? — Me tratava normalmente pelo apelido, Valdo. Mas quando queria me aborrecer ou estava com raiva, me chamava pelo nome completo. — Bem sabe que nossa cama não está quebrada. Nem nunca teve. Esse cara é vigarista. Não precisava nem me telefonar.

Marqueta, ao meu lado, fazendo jus ao apelido, ouvia tudo.

Voltei à portaria. O alemão lá permanecia, de pé, mais vermelho e com um olhar ameaçador.

— Consertei a cama. Querro pagamento. Vinte...

— Olha, Fritz, telefonei pra minha mulher. Não tem cama nenhuma quebrada lá em casa. O senhor tá enganado. Não é nada comigo, não.

— Consertei o cama! — Agora, já gritava.

Os funcionários da portaria olham para mim e para o alemão, uns como que gozando, outros, reprovando. O “diretor” tinha no olhar a reprovação e nos lábios o sorriso de gozação. Disse:

— Paga logo o alemão, aí. Assim se livra dele.

— Pagar o quê, Carlão. — Agora tinha de responder também ao contínuo. — Esse cara se enganou ou tem alguém querendo gozar com minha cara. — Curiosos na fila do elevador dependuravam a orelha para ver o que estava acontecendo.

— Consertei o cama.... — Insistia o alemão.

Peguei o homem pelo braço e o levei na direção da saída.

— Olhe aqui, telefonei para minha mulher, ela não mandou ninguém consertar cama...

Quando falei “consertar cama”, os olhos dele brilharam:

— Iá! Iá! Consertar cama...Vinte cruzeirros!

Estávamos já na porta do edifício, quando chegou o Marqueta, célere. Trazia duas notas de dez cruzeiros na mão e, sem me dar tempo para nada, depôs as notas na mão do alemão, dizendo:

— Tome o dinheiro! Agora, suma. Aufiderssem! — E falando alto, para que todos escutassem:

— Sei que você anda apertado de dinheiro, mas não se preocupe não. No fim do mês você me paga.

ANTÔNIO GOBBO – BELO HORIZONTE, 3/FEV/2007

Conto # 420 da série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 22/09/2014
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