419-BICICLETAS ACORRENTADAS-Memórias de estudante-autobiográfico

Os alunos do Ginásio de São Roque da Serra eram, na grande maioria, da classe média. Colégio pago não era para qualquer um, não senhor. A maioria da classe alta, os ricos, e outros da classe remediada, e um ou outro da classe pobre, que freqüentam o ginásio sem pagar, através de bolsas de estudos concedidas pela Prefeitura. Foi, durante décadas, administrado pelos competentes Irmãos Lassalistas, que também concediam bolsas aos cinco primeiros colocados no exame de admissão.

O ginásio situava-se longe do centro da cidade, próximo ao campo de aviação, local desabitado na década de 1940. A larga avenida era de terra, e uma calçada larga fora construída de um só lado. Não existia ônibus escolar e a grande maioria ia a pé para o estabelecimento. Os alunos ricos tinham bicicletas e subiam a avenida pedalando.

Por uma cortesia dos irmãos, as bicicletas ficavam encostadas no tronco da velhíssima mangueira, ao lado da residência dos Irmãos Lassalistas, no fundo do ginásio. À saída, os filhinhos de papai desciam pelo largo passeio, em alta velocidade, passando como loucos entre os colegas pedestres, tirando fino, gritando, apostando corrida, fazendo os pneus guincharem em brecadas repentinas, enfim, aprontando toda a espécie de travessura com as magrelas.

Um dia, Leco foi atropelado pelo Zé Lima. Franzino, foi jogado de encontro ao muro. Levantou-se de supetão, os braços arranhados e a perna escoriada. Apanhou seus livros e cadernos, espalhados pela calçada, enquanto o Zé Lima continuava na sua louca pedalação.

Leco não reclamou e até escondeu os ferimentos em casa. Se falar alguma coisa, sou até capaz de levar um castigo, pensou.

Contudo, o fato chegou ao conhecimento do irmão Fritz que chamou Leco na sala da diretoria.

— Leôncio, quero saber o que aconteceu na semana passada.

Esfregando o braço ainda com mostras dos arranhões, como que querendo escondê-los do Irmão, se fechou em copas.

— Nada, não, Irmão. Foi só um susto.

Não denunciou o colega, pois tinha medo que Zé Lima, da quarta série, bem maior do que ele, o espancasse. Aliás, Zé Lima ameaçou a todos os colegas, principalmente os bicicleteiros, de represálias.

— Se o Irmão Fritz ficar sabendo vai proibir a gente de vir ao ginásio de bicicleta. Então, ninguém fala nada, entendido?

Não houve denúncia, os colegas se calaram, os bicicleteiros fecharam o bico.

Leco, entretanto, trama a sua vingança pessoal A oficina de ferreiro do pai era cheia de badulaques, que Leco conhecia mais do que João Tisno, ajudante na ferraria. À sorrelfa, tirou uma enorme corrente, de uns cinco metros de comprimento, e um cadeado amarelo, com a respectiva chave.

Na manhã da sexta-feira seguinte, faltando meia hora para terminar a última aula, Leco pediu ao professor para ir ao banheiro. Esquivou-se pelos corredores desertos e chegou furtivamente até a mangueira, onde estavam encostadas, lado a lado, mais de dez bicicletas. Trabalhando rápida e furtivamente, passou a corrente entre as raias das rodas, e fez um circulo, fechando-a com o cadeado.

Pegou a chave do cadeado e foi até o refeitório dos irmãos. A cozinheira estava preparando o almoço, não se deu conta da entrada de Leco, que colocou a chave sob o prato do Irmão Amadeu, o diretor. E voltou para a sala onde o professor explicava um ponto de geografia.

No final da aula, todos se precipitaram para as saídas do colégio. Os bicicleteiros se surpreenderam quando encontraram as bicicletas acorrentadas.

— Deve ser coisa do Irmão Fritz. — Zé Lima não se intimidou, tinha as costas quentes, o pai era importante na cidade. — Vamos falar com ele.

Irmão Fritz ficou mais surpreso do que os pupilos donos das bicicletas.

— Não fui eu não. Mas é bem feito. Procurem por aí, deve estar escondida por perto.

Deixando os alunos atarantados à procura de uma minúscula chave no pátio em torno da Residência, subiu, com os demais irmãos, ao refeitório. Os outros irmãos foram chegando: Izidoro, Raimundo, Gregório, Ildeu. O último a chegar foi o irmão-Diretor..

— Que azafama é aquela debaixo da mangueira? – Ele perguntou.

— As bicicletas dos meninos foram acorrentadas juntas. Eles estão procurando a chave do cadeado. – Respondeu Irmão Fritz.

— Tem menino até em cima da mangueira. – Comentou irmão Gregório.

Os irmãos entraram no refeitório, fizeram suas orações com a calma de praxe e sentaram-se para a refeição. Quando Diretor virou seu prato, eis que viu o brilho da chave amarela, de latão, sob o prato.

— Nossa Senhora! Que chave é esta ?

Irmão Fritz pescou no ar a tramóia toda.

— Deve ser a chave do cadeado que os meninos estão procurando.

— Mas, como é que ela veio parar debaixo do meu prato.? Esses meninos estão brincando conosco? — De natureza calma, pela primeira vez naquele ano ele perdeu a fleugma.

— Calma, Irmão. Isto deve ser armação de algum dos alunos. — Falou o irmão Fritz.— Acho que sei quem é o autor. Mas não vamos nos preocupar agora. Deixemos os meninos procurar mais. Depois do almoço, eu mesmo entregarei a chave.

Já passava da uma da tarde, os meninos famélicos e desanimados de tanto procurar a chave do cadeado. Irmão Fritz assomou no alpendre da Residência exibindo a brilhante peça dourada.

— Achamos a chave. Estava aqui. – Diz, vagamente. — Mas só entrego quando me contarem direitinho o que houve na segunda feira, quando um de vocês atropelou o Leco.

Não houve como ocultar mais os fatos. Alguém da turma gritou:

— Fala, Zé Lima, se não a gente não sai daqui nunca mais.

Foi assim que Zé Lima, filho do delegado de polícia Dr. Lima, começou a assumir a responsabilidade pelos seus atos.

ANTÔNIO GOBBO –

BELO HORIZONTE, 27.01.2007

Conto # 419 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 22/09/2014
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