418-A ÚLTIMA PROFECIA-Mitologia Judaica
Naqueles tempos bíblicos, a voz de Joatão se fez ouvir do alto do Monte Garizim, irmão pregando contra irmão:
“Uma roda de pedra virá pelos céus e se abaterá sobre a cabeça do rei usurpador e cruel”.
Muitos anos antes, o estabelecimento dos israelitas na Palestina, ao chegarem do Egito, após vagarem, perdidos no deserto, por mais de quarenta anos, não fora tranqüilo nem muito organizado. Ocuparam Canaã, cujas terras eram povoadas por tribos de árabes que haviam abandonado a vida nômade. E enfrentaram a resistência de cananeus, moabitas, filisteus, madianitas e mais de uma dezena de tribos, que viviam ao longo do Rio Jordão e ao redor do Mar Morto.
Dividiram-se em doze grupos principais, chamadas de tribos de Israel. Cada tribo ocupou uma extensão de terra, a leste e a oeste do Rio Jordão. As terras não eram delimitadas rigorosamente e, portanto, cada tribo tinha um inimigo a enfrentar: os palestinos que já ocupavam o lugar por muitas e muitas gerações.
Como não havia uma organização social, cada tribo ficou independente, e se organizou de maneira própria. Havia, contudo, um acordo, um pacto não escrito, segundo o qual, se uma tribo fosse atacada, as outras viriam em sua ajuda. Nos confrontos contra o inimigo, os combatentes só obedeciam à orientação do mais autoritário ou mais valoroso deles, que ficaram historicamente conhecidos como Juízes.
Dos inimigos do norte, os madianitas eram os mais ameaçadores. Eram beduínos do deserto, um povo que ocupava ao mesmo tempo os vales com seus rebanhos e campeava pelo deserto e pelas regiões dos israelitas. Cruéis, esses povos mantinham o povo de Javé sob constante ameaça. Pilhagem e roubo, saques e incêndios, por onde passavam deixavam o rastro de violência e destruição.
Gedeão era um pacato agricultor, sem nenhuma ambição guerreira nem traquejo para liderança. Pertencia à tribo de Manassés, que havia assumido a posse da grande região que se estende ao norte e à oeste do Rio Jordão e do Mar da Galiléia.
Uma tarde, socava trigo recém-colhido, a fim de escondê-lo dos perigosos madianitas. Trabalhava ao lado de frondosa árvore, defronte de sua casa. Uma sombra projetou-se sobre a fina camada de trigo estendida no solo. Levantando os olhos de seu trabalho, divisou um homem que lhe acenou, chamando-o para a sombra refrescante da árvore. Gedeão atendeu ao gesto e logos os dois estavam conversando animadamente.
O que conversaram, ninguém sabe em detalhes. O estrangeiro (pois assim parecia, usando estranhas e coloridas vestes e falando com voz autoritária) informou a Gedeão que ele tinha sido escolhido para salvar Israel das mãos dos madianitas.
Sem questionar de quem partia a ordem, o simples lavrador atendeu à convocação. Os israelitas já estavam sedentos de ação. Queriam partir para se vingarem dos assaltos contínuos e foram facilmente reunidos por Gedeão. Em escaramuças rápidas e decisivas, em ações rápidas e fulminantes, o exército de Gedeão venceu os inimigos, obtendo a vitória contra os madianitas em um local conhecido como Fonte de Harod.
Com o êxito da campanha, Gedeão se viu alçado à condição de Juiz da tribo de Manassés. Entretanto, era um homem muito simples. Não quis saber de honras nem de poder. Deixou que seu filho Abim Melec assumisse o poder.
Bem diferente do pai, Abim era ambicioso, cruel, astucioso. Usando de meios escusos, entre os quais o assassinato dos oponentes,conseguiu ser nomeado rei por uma parte da sua tribo. Mas grande parte da população era contra essa autoproclamada realeza, que, afirmavam, era o modo dos ímpios governarem.
Para mostrar ao povo quem realmente mandava na tribo, mandou matar, bem no início de seu “reinado”, seus setenta irmãos e irmãs. Assim, pensava o primeiro rei de Manassés, poderia reinar sem dificuldades e sem partilhar o poder. Do massacre, todavia, salvou-se o mano Joatão, que se escondera habilmente debaixo do monte de palha de trigo, amontoado para servir de alimento aos animais domésticos
Joatão se tornou o verdadeiro sucessor de Gedeão, fazendo pregações ao seu povo e denunciando aos habitantes de Siquém as crueldades do tirano, seu irmão. Entre os avisos e profecias de Joatão, estava a previsão da morte de Abim Melec:
— Uma roda de pedra virá pelos céus e se abaterá sobre a cabeça do rei usurpador e cruel.
Joatão foi visto pela última vez quando espalhava do alto do Monte Garizim a profecia sobre o rei-irmão, tendo sido esta profecia a última de sua vida.
O povo de Siquém sempre fora contra Abim Melec. Rebeliões de sucediam, até que uma revolta maior levou o rei a suprimir duramente e totalmente as manifestações contrárias. Abim Melec arrasou a cidade, destruindo-a completamente.
Na senda de suas façanhas guerreiras, sitiou, três anos depois, a cidade de Tebas, a alguns quilômetros das ruínas de Siquém. Ao final, os tebanos se renderam. Cercado pelos seus auxiliares diretos, entrou na fortaleza da cidade, como vencedor.
No alto da muralha, uma mulher procurava se esconder, caminhando furtivamente entre as ameias. Não tinha bem a idéia do que iria fazer. Mas tinha uma sede de vingança contra Abim Melec, a quem atribuía a culpa pelas mortes do marido e do filho, defensores da cidade. Conhecia os segredos da fortaleza e aproximou-se do local onde funcionava um rústico elevador de cargas, feito de cordas, alavancas e engrenagens. Destinava-se a levantar e lançar pesos contra o inimigo que se aproximasse da muralha. Parcialmente destruído, o mecanismo era um amontoado de vigas de madeira, de cordas grossas e de roldanas de pedras.
O cortejo passou rente à muralha. Abim Melec estava de pé, em sua carruagem de duas rodas, puxada por fogoso cavalo negro. A mulher abaixou-se e apanhou uma das roldanas, uma pedra fina e redonda, com estrias e furos apropriados. Não muito pesada, mas com peso bastante para o que ela desejava fazer.
Levantando-se sobre a amurada, lançou com toda sua força o disco na direção de Abim Melec. Alguns que acompanhavam o rei viram o vulto, e viram também quando uma roda veio girando na direção da comitiva vitoriosa, atingindo fatalmente Abim Melec na cabeça.
Estava cumprida a última profecia de Joatão.
Antônio Gobbo – S.S.Paraíso, 26.01.2007
Conto # 418 da Série Milistórias