415-O QUARTO DE BRONZE- Mitologia grega

Os esforços para escapar às tramas do Destino são medidas inúteis que se revelam, por vezes, patéticas e dramáticas. A história, a mitologia e as lendas estão cheias de exemplos da inutilidade das tentativas de modificar a predestinação dos fatos.

Uma das mais sagazes cavilações para driblar o destino foi a do mitológico Rei Acrísio, cujo trono se assentava em Argos, cidade do Peloponeso, terra de mistérios e nascedouro de muitas lendas.

Conta-se que Acrísio teve um aviso do oráculo: Será morto e sucedido no trono por um neto, filho de sua filha única, Dânae. Abalado com a profecia e temendo tanto por sua vida como pelo seu trono, tomou as providências com as quais pensou poder desviar a linha traçada pelo Destino.

Dânae era sequer casada: linda jovem de pele perolada e cabelos dourados, a moça, resguardada naturalmente no imenso palácio, não tinha pretendentes e talvez nem conhecesse jovens que poderiam vir a ser candidatos à sua mão. Antes que isto acontecesse, o pai tratou de afastar a filha de qualquer ocasião que a levasse ao casamento. Na ala mais remota do palácio, mandou erigir uma torre no topo da qual foi construído um quarto de bronze. Lá, longe de tudo e de todos, foi encerrada a formosa virgem. Seu único contato com o mundo exterior era através da velha encarregada de sua educação, a qual lhe levava comida, roupas e todo o necessário para a vida de uma prisioneira.

Ora, Zeus, o rei de todos os deuses, era insaciável em seus desejos. Sua preferência era pelas mulheres mais difíceis e pelas casadas com seus amigos (que se tornavam inimigos tão logo as esposas eram seduzidas pelo todo-poderoso). Sabia, por ser também onisciente, das predições do oráculo a respeito de Acrísio, bem como das providências deste para negar à filha qualquer oportunidade de se tornar mãe.

Zeus gostava de situações deste tipo, para ir de encontro aos desejos de suas súditas, divinas ou humanas. Possuir a belíssima Dânae seria um prazer imenso, ao mesmo tempo em que pregaria uma peça em Acrísio. O quarto de bronze, cujas paredes e portas eram intransponíveis, selado e proibido para os homens e deuses menores, foi facilmente violado pelo rei dos deuses.

Por uma goteira no teto, entrou na forma de pingos de chuva de ouro. Dânae, pressurosa, ajuntou em suas alvas mãos os pingos dourados, que se reconstituíram na forma de Zeus. Os momentos de amor desvairado, despertado pela paixão incontida de Zeus, só podem ser imaginados, pois ninguém os testemunhou.

O certo é que da união clandestina nasceu um menino, que a mãe chamou Perseu. Dânae e a fiel criada conseguiram tudo esconder do rei. Mas um dia, ouvindo o choro forte do menino, vindo da torre, Acrísio foi até o quarto de bronze.

— Malditos sejam os três! — Gritou do alto, ao descobrir o engodo. Surpreso e furioso, não acreditou na trama da intervenção divina.— Você, megera infiel, será executada. — Sentenciou para a criada.

Ante a fúria do pai, Dânae chorou e gritou, desesperada. As lágrimas o comoveram. Não eliminou o menininho, mas engendrou outra forma de evitar o prosseguimento da trama de sua predestinação: Trancou a filha e o neto numa arca de madeira, que mandou jogar no mar.

Tal qual o quarto de bronze, a arca de madeira lançada ao mar não impediu que o vaticínio do oráculo se cumprisse. Mais clemente do que o implacável rei Acrísio, o Destino fez com que a grande arca fosse jogada, pelas ondas, ao largo da ilha de Serifo, onde, ao entardecer prolongado de uma tarde de verão, Dicne recolhia suas redes.

Por Zeus! Que peso! Aí vem peixe grande.

Qual não foi sua surpresa ao arrastar para dentro do barco a arca.

Uma arca! Pelo tamanho, deve estar cheia de tesouros. — Pensava em moedas e jóias, mas quando abriu a arca, encontrou uma linda moça e um bebê faminto.

Ante a beleza da jovem e o choro de fome da criança, o jovem pescador revelou sua boa índole e os levou para sua casa, onde ficaram sob sua proteção.

Passaram-se anos. Prometeu já era jovem garboso. Dânae, a mãe dedicada, continuava formosa e adquirira as formas de uma lindíssima mulher. Eis que o rei da ilha, Polidectes, foi visitar o irmão Dicne e conheceu Dânae, por quem ficou perdidamente apaixonado. Perseu, entretanto, no seu desvelo pela mãe, constituía sério embaraço às pretensões do visitante real.

O rei da ilha não desistiu facilmente. Organizou uma grande festa em seu palácio para homenagear Dânae e Perseu. Como de hábito, todos os participantes ofereceram presentes suntuosos ao rei. Perseu, no afã de agradar o rei, mesmo sendo homenageado, prometeu-lhe uma façanha inusitada.

— Vou trazer para o rei a cabeça de uma das três Górgonas.

— Você não sabe bem o que está me prometendo, jovem Perseu. Correrá sério risco de vida se tentar matar qualquer uma das Górgonas.

O rei conhecia o perigo que corria o jovem audacioso. A simples menção das Górgonas causou arrepio entre os participantes da festa. Eram três irmãs, Estene, Euríale e Medusa, criaturas horrendas, Suas faces infligiam pavor, de tão horripilantes. Centenas de cobras infestavam suas enormes cabeças. Duas delas eram imortais. Somente Medusa poderia ser atacada com sucesso.

— Tenho ajuda dos deuses! — Gabou-se Perseu. — Dê-me o tempo entre duas luas cheias e trago-lhe este troféu.

— Você só poderá trazer a cabeça de Medusa. Mas, cuidado! Ela transforma em pedra qualquer pessoa ou animal que lhe dirigir o olhar. — Polidectes avisou. Estava contente pela valentia de Perseu, pois se enfrentasse Medusa, por certo jamais voltaria da empreitada. Seria mais uma estátua entre os milhares daqueles sobre os quais a Górgona deitara o olhar maldoso.

Partiu Perseu sob as bênçãos da mãe. Abraçando-o, recomendou:

— Procure as Ninfas. Elas o ajudarão. Também visite Atena e Hermes, filhos de Zeus, como você. E seu tio Hades, com certeza, irá protegê-lo.

Das Ninfas, tomou emprestadas sandálias aladas que o fariam correr mais depressa que o vento, e um saco para colocar a cabeça de Medusa. De Hades, recebeu um capacete que o tornava invisível. Hermes lhe deu uma foice de lâmina duríssima e afiada. E de Atena, um enorme escudo de bronze polido, tão polido que mais parecia um espelho.

Calçou as sandálias, pegou o saco, o capacete, a foice e o escudo e voou para o lugar onde habitavam as Górgonas. Pelo caminho, foi observando os sinais da passagem delas: homens e animais de pedra ladeavam a estrada.

Repentinamente, deparou-se com um grande ajuntamento de estátuas. Formavam um grande círculo, em cujo centro estavam as Górgonas. Dormindo.

Desceu (pois estava voando, graças às sandálias) e sem fazer um ruído, foi se aproximando das horríveis criaturas. Ia com cuidado e de costas, para não ver nenhuma delas. Orientava-se observando o reflexo de seus passos no escudo de bronze.

Medusa se mexeu. Será que ela percebeu minha aproximação? Indagou-se Perseu. Sem um instante de hesitação, apertou firme o cabo da foice, lançou o braço para trás e cortou o pescoço de Medusa com um golpe certeiro. Sempre olhando os reflexos no escudo, agarrou a cabeleira de serpentes e enfiou a cabeça dentro do saco emprestado pelas Ninfas.

O grito de Medusa ecoou pelo Universo, levando terror e medo a todas as criaturas. Ao mesmo tempo, do sangue de Medusa, escorrendo de forma horripilante, nasceu um cavalo dotado de asas. Todo branco, selvagem, Pégaso alçou vôo sem que Perseu pudesse pegá-lo. As outras duas Górgonas acordaram. Procuraram o causador de toda aquela confusão, mas nada viram, pois Perseu se tornara invisível graças ao capacete de Hades. Com sua sandália alada, partiu em direção à ilha de Serifo, levando a cabeça de Medusa para o rei Polidectes.

Foi longo o caminho de volta, pois a curiosidade de Perseu o levou a sobrevoar distantes regiões e paises exóticos. Estava sobre a África quando viu, nas rochosas costas da Etiópia, uma forma branca precariamente agarrada a um rochedo. Intrigado, Perseu aproximou-se e verificou que era uma linda jovem. Ameaçada pelas ondas que poderiam atingi-la a qualquer momento, derramava lágrimas as quais se juntavam ao mar encapelado, abaixo dela. O herói alado se aproximou e quando a olhou de perto, sentiu crescer no seu coração um sentimento estranho, que jamais havia sentido até então. Desceu na estreita faixa de rocha e indagou da linda moça:

— Como se chama? Qual o motivo de sua angústia? Seu navio foi tragado pela fúria de Posêidon?

Pudicamente, a moça procurou cobrir seu corpo, protegido apenas por fragmentos de roupas, e respondeu:

— Meu nome é Sâmara. Estou aqui justamente por causa das filhas deste deus dos mares. Minha orgulhosa mãe se gabou de ser mais bonita do que as Ninfas marinhas, as filhas de Posêidon. Ele se enfureceu com o orgulho de minha mãe e mandou um monstro assolar nossa cidade, Mandab, que fica mais acima, nas praias do Mar Vermelho. Para aplacar a cólera do terrível monstro, que exigia uma virgem para si, os habitantes me escolheram para ser entregue à besta marinha. Estou aqui à espera. A qualquer momento...

As palavras da jovem foram interrompidas pelo barulho de uma onda gigantesca quebrando-se nos rochedos. Do abismo entre as ondas surgiu o mais horrendo e monstruoso bicho, enorme verme alado babando uma gosma verde e mortal. Pés e mãos eram pinças e da cabeça, provida de um só olho, despontava um aguilhão ignescente, tal qual o ferrão de um escorpião. Os urros emitidos pela fera ouriçaram os cabelos de Perseu.

O monstro avançou na direção da moça, quando foi interceptado por Perseu. Usando seu escudo espelhado, fez refletir nos olhos da fera a luz do sol. Desorientado, procurou Perseu. Voando acima da cabeça da fera, o herói usou a foice de Hermes, e num só golpe, arrancou o ferrão e furou o olho da horrível besta mitológica.

Urrando ainda mais, agora por estar mortalmente ferido, nada enxergando e portanto, impedido de avançar sobre Perseu ou a jovem, o monstro tombou no mar e foi engolido pelas ondas que se tornaram mais verdes ainda, um verde bilioso e nojento, devido ao sangue e à baba do monstro que morria.

— Venha comigo. Vou levá-la a um lugar seguro. — Sem mesmo ouvir a resposta da jovem, que desmaiara em seus braços, Perseu a tomou pela cintura e os dois voaram para bem longe daqueles sinistros rochedos à beira-mar.

A paixão brotara entre os dois. Perseu foi recebido com honras de herói e com os agradecimentos de todos os habitantes de Mandab, pela libertação de tão cruel domínio da monstruosa e cruel criatura. A mãe de Sâmara, reconhecendo o mal que causara à filha, tudo fez para torná-la feliz. Ofereceu ricos presentes a Perseu, além da mão da jovem. Casaram-se em seguida, com as bênçãos da mãe da linda virgem de cabelos dourados e pele da cor do marfim.

Depois das festas de casamento, que duraram uma semana, o casal voltou à ilha de Serifo, onde a desordem havia sido instalada. O rei Polidectes se tornara um dissoluto, e tentara violentar Dânae.

— Vou enfrentá-lo e acabar com sua raça.

— Cuidado, filho. Ele é poderoso e tem muitos amigos, tão cruéis quanto ele.

Entrando no palácio real e aproximando-se do trono, Perseu gritou-lhe:

— Polidectes, vim lhe trazer o troféu que prometi.

E sem mais delonga, tirou do saco a cabeça da Górgona coberta de serpentes, em lugar de cabelos, que exibiu diretamente em frente ao rei. Ante tão pavorosa visão, o rei levou à mão aos olhos, não antes de ver e ser visto pelo olhar de Medusa. Foi imediatamente transformado em pedra.

Perseu sabia de seu destino, pois Dânae lhe contara tudo sobre a predição do oráculo, as tentativas de Acrísio de se livrar tanto dela como do neto. Mas Perseu não conhecia o avô.

Tendo colaborado para que a ilha e seus habitantes voltassem à vida normal, após a transformação do antigo rei em estátua, e sentindo que seu tempo chegara, o herói dirige-se para Argos. A mãe e a esposa o acompanhavam.

Os espiões de Acrísio, espalhados por todo o Peloponeso, o avisaram do retorno de Perseu. O rei, obcecado pelo medo, sai de sua cidade e vai para Esparta, cidade ao sul da península. Aproveitaria para assistir, incógnito, aos jogos que ali estavam se realizando.

Perseu, retornando da Ilha de Serifo, passa por Esparta, toda festiva e engalanada para os jogos. Sendo jovem, excelente atleta, dotado de muita força e agilidade, participa dos jogos.

O Destino fecha a última trama de sua tessitura. De um ponto qualquer do estádio, misturado à multidão, está o velho Rei de Argos, Acrísio, assistindo às competições. No centro da arena, os melhores atletas se sucedem, exibindo-se nas diversas modalidades dos jogos. Entre eles está Perseu.

Na disputa do lançamento de disco, ao chegar sua vez, Perseu arremessou o disco com tal força, que foi acertar na cabeça de um expectador, um ancião em roupas modestas, matando-o.

Era o rei Acrísio, disfarçado e incógnito na multidão. O oráculo acertara mais uma vez.

Perseu se entristeceu de verdade com o funesto acontecimento. Ofereceu, como era de praxe, suntuoso funeral e esplêndidas homenagens ao avô, antes de assumir o trono como o novo Rei de Argos.

ANTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 15 de dezembro de 2006.

Conto # 415 da série MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 21/09/2014
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