414-CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA-Filmes Seriados no Cinema

Julho de 1946. Período de férias escolares e São Roque da Serra fica cheia de estudantes que freqüentam escolas em outras cidades, passando dias de descanso na cidade natal. Há poucas opções de diversão, entre elas o footing pela praça e as sessões do Cinema Recreio. De segunda a sábado, há apenas uma sessão noturna, que se inicia às 19:40 h. O cinema é pontual, tão pontual quanto o horário de chegada e saída dos trens da Mogiana e as missas do Padre Ranzine. Não me perguntem o porquê de horário tão estranho, acho que nem mesmo o gerente saberia explicar.

Aos domingos, a matinê começa às 2:15 da tarde. Parece que os horários devem ser complicados, mesmo. Nas tarde ensolaradas, os compradores de bilhetes não conseguem organizar-se numa fila normal.

— Ei, moço, eu estou na sua frente! — Seu Juvêncio, negro de cabelos brancos, reclama.

— Ora, velhinho, devia ter dormido na frente da bilheteria. — Um gaiato responde.

Há empurra-empurra, gente querendo avançar (e conseguindo) sobre os que estão na frente. Os estudantes em férias aumentam a algazarra e a confusão faz parte do espetáculo.

O gerente, genro do dono do cinema (o cinema pertence à família), aparece na porta de entrada, vê a multidão aglomerada, fica satisfeito com a grande quantidade de pessoas que querem comprar bilhetes, entra de novo para o saguão sombreado e fresco, em cujas paredes estão dependurados grandes quadros com fotos de artistas e filmes que serão exibidos nas próximas semanas. Os filmes atendem ao gosto popular: comédias de Charlie Chaplin (“Carlitos”), Stan Laurel e Oliver Hardy (“O gordo e o magro”), aventuras de far-west ou cow-boys com Charles Starret, ou de Tarzan nas selvas. Alguns dramas como “A Dama das Camélias” ou “O Fantasma da Ópera” são peças raras.

Os assistentes vão se assentando, enchendo as fileiras de desconfortáveis cadeiras de madeira. Os namorados preferem ir para a galeria, uma espécie de mezanino com poucas cadeiras e mais reservado, mais escurinho. Descendo e subindo os estreitos corredores laterais, rapazes passam os olhos sobre as mocinhas já assentadas, flertando ou escolhendo cadeiras vagas.

O único vendedor de jornais e revistas da cidade, conhecido como Zéca Jornaleiro, também caminha pelos corredores, sobraçando revistas que oferece aos assistentes. Alguém acena, e o jornaleiro entra pela fileira, tropeçando entre os que já estão sentados.

— O Cruzeiro? A Cigarra? — Oferece em voz baixa.

— Tem Seleções? — O homem de terno e gravata parece ser culto.

Enquanto esperam, os assistentes folheiam revistas ao som de músicas de orquestras melodiosas, que quase não se ouvem, devido ao alarido geral. Até que as luzes se apagam, mergulhando o recinto numa escuridão total. O apagar das luzes levanta um berreiro da assistência. Assobios, gritos, um auê que vai amenizando com as primeiras cenas dos trailers. Se as cenas são movimentadas, com lutas, perseguições, tiroteios, voltam os gritos, as vaias, os berros.

Depois dos trailers, dos shorts (curtas-metragens) do “jornal da tela” e do desenho animado, enfim, começa o filme. Na matinê dos domingos são exibidos, além dos preâmbulos já registrados, um filme e dois capítulos de um seriado. Para a sessão desta tarde está anunciado “Três Heroínas Russas” e continuação do seriado “Nyoka, a Deusa das Selvas”

Enfim, aparece a marca da distribuidora do filme. É um filme europeu, distribuído pela “Art”, cujo logotipo apresenta um condor voando de um lado ao outro da tela. Antes de iniciar o vôo, ouve-se o alarido dos engraçadinhos, xip, xip, xip, como que espantando a ave. Todos se acalmam com os letreiros dos nomes dos intérpretes principais, e com o início do filme. Assistem em silêncio, atentos à trama e às legendas. O filme tem bastante diálogos e as legendas se sucedem rapidamente.

“Três Heroínas Russas” conta a história de amigas, moças de Moscou que devem participar da guerra. Cada qual segue uma missão, todas arriscadas e emocionantes. No final encontram-se, enquanto no background podem ser vistas as ruínas de uma cidade destruída pela guerra. Filme de propaganda de guerra, enaltecendo o esforço russo na luta contra os alemães na segunda guerra mundial.

Terminado o filme, ao aparecerem as primeiras cenas do seriado, alguns assistentes saem do cinema: pessoas de idade, que não apreciam as aventuras de Flash Gordon, Dick Tracy e outros heróis da tela. Hoje, as aventuras são de Nyoka, “A Deusa das Selvas”: uma loura espetacular, trajando uma pele de leopardo, que deixa entrever as coxas grossas, para gozo dos garotos e adolescentes. Salta entre as árvores, domina os segredos da jângal, luta contra caçadores cruéis. É uma versão feminina de Tarzan.

Parece que a assistência, agora, é outra, diferente daquela que assistiu com atenção ao filme. Da primeira à última cena dos dois episódios, é uma gritaria infernal, apupos, vaias quando aparecem os bandidos, berros de incentivo à mocinha e seus amigos: chipanzés, elefantes, zebras. Os nativos da floresta são sempre maus, bem como os felinos e os caçadores ou exploradores brancos.

O episódio termina, como sempre, com cenas em que a aventureira está em perigo, deixando o suspense perdurar pela semana, até a próxima matinê, domingo que vem. Em vez da palavra FIM, que encerra os filmes, aparece a expressão consagrada, recebida com mais gritos, assobios e vaias: CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA.

ANTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 15 de dezembro de 2006

Conto # 414 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 20/09/2014
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