413-O FARDO DA LIBERDADE-Escravos Libertados No Sul de Minasantes da Lei Áurea

Rui Barbosa talvez soubesse desta história quando determinou a destruição de todos os registros e documentos sobre os escravos. Todavia, a tradição oral é persistente. Através das narrativas passadas de geração para geração, a ponto de se tornarem lendas, é possível reconstituir a crônica e consigná-las como capítulos válidos da História.

O bávaro Fritz Stamberg, com 22 anos de idade, vítima de uma confusão em que se envolvera, fora preso e condenado em sua terra. Foragido, vagou pela Europa até chegar a Portugal, onde embarcou como tripulante de navio com destino ao Brasil, aqui chegando por volta de 1800.

Desembarcou no Rio. Na sua ânsia de se colocar o mais distante possível de qualquer autoridade, embrenhou-se pelo interior e foi parar no sul de Minas. Trabalhador, inteligente, metódico e organizado, constituiu, em três décadas, um patrimônio de fazer inveja a muitos fazendeiros tradicionais da região.

Barões do açúcar implicavam com a prosperidade do bávaro, que apostara tudo na cultura do café. A região montanhosa de Minas se prestava à cafeicultura, e o suíço tornou-se um dos maiores produtores da província. Os compradores da produção da fazenda de Herr Fritz admiravam-se de tudo o que viam na propriedade do suíço.

— É a melhor fazenda de café que conheço. — Álvaro de Souza Gomes, corretor de café em Santos, sabia do que falava, pois visitava todos os seus fornecedores. — Bem administrada. Herr Fritz não economiza no trato dos cafezais. Por isso sua produção é a melhor, o café é de primeira qualidade e ganha de todos os fazendeiros.

Fritz Stenberg era conhecido por “seu Fritas”. Longe de ser depreciativo, o tratamento era usado com respeito por clientes, empregados, capatazes e escravos. Grande parte de seu capital estava investido em escravos, mão-de-obra então prevalecente. Os seus vizinhos, entretanto, o tratavam por “bárbaro”.

Mantivera-se solteiro. A força da natureza, entretanto, o levou à prática de um direito tácito dos senhores de escravos: a posse sexual das mais vistosas negras da senzala. Por isso, com o passar dos anos, muitos meninos e meninas nascidos das escravas de “seu Fritas” traziam traços genéticos irrefutáveis da paternidade européia: cabelos encaracolados loiros, olhos azuis, narizes afilados ou lábios finos. Conta-se que foi o responsável pela geração de mais de cem mestiços.

Ao atingir a idade madura, a sabedoria veio fazer companhia às qualidades administrativas de Herr Fritz. Nunca permitira o mau-trato aos escravos e já despedira meia dúzia de feitores, por haverem infligido castigos aos negros. Aos seus descendentes mestiços reconhecia a paternidade e concedia alforria. Na velhice, tornara-se um homem afável e de bom trato, querido por todos, principalmente pelos escravos.

Sua atenção estava centrada exclusivamente no cuidado de suas propriedades e jamais se envolvera com a política. Chegara ao Brasil quando ainda era colônia de Portugal. Não se deu conta da vinda e residência de Dom João VI, do qual ouvira falar quando de sua volta a Portugal. Pouco significado teve para Herr Fritz a “proclamação da independência”, da qual ficou sabendo muitos meses depois de ocorrida, através do comprador Souza Gomes, em sua visita anual.

Assim, eis o grande proprietário de terras, plantações e escravos completamente realizado e beirando os setenta anos. Ainda que saudável, tomou as precauções legais relativas ao destino de suas fazendas (tinha cinco, todas na mesma região) e escravos. No testamento feito em cartório, fez doação de seu patrimônio imobiliário aos 117 filhos espúrios, havidos com escravas, apresentando relação nominal e com datas de nascimento. Pelo seu falecimento, todos os escravos serão libertados.

O testamento causou estranheza nas autoridades. Antecipando-se, por mais de duas décadas, das grandes discussões que redundariam na Lei Áurea, a liberdade dos escravos era uma idéia totalmente inaceitável. Ainda que contestável, a vontade exarada em cartório, com firma reconhecida e testemunhas, prevaleceu. E dois anos depois, em 1852, com 73 anos de idade, faleceu Herr Fritz Stamberg.

Por essa ocasião, alguns filhos bastardos e alforriados desde o nascimento, já eram homens feitos, e conscientes da condição de herdeiros do fabuloso patrimônio. Porém, sem qualquer tipo de educação ou treinamento para dar continuidade à administração de “seu Fritas”. E este foi o grande erro do velho suíço: não treinar os mestiços para administrarem o patrimônio herdado.

A primeira providência foi a dispensa dos feitores, e de todos os brancos que trabalhavam nas fazendas, em diversos cargos ou serviços de confiança do velho Fritz. As fazendas permaneceram indivisas, isto é, não trataram de estabelecer os donos de cada propriedade. Os escravos, agora todos livres, não quiseram abandonar as terras, na premissa de que continuariam trabalhando nos cafezais.

Os novos-donos, sem qualquer noção de como administrar as fazendas, não usaram o dinheiro guardado pelo seu Fritas, disponível para pagar os serviços dos irmãos, pais, mães e avós, agora livres. Quatro anos sem gerenciamento, liderança ou qualquer tipo de organização, foi tempo suficiente para mergulhar o grande patrimônio no caos. Acabados os mantimentos que possuíam, diminuída a produção de café, os donos e os ex-escravos começaram a passar necessidades e até fome.

Brilhou, então, uma idéia, vinda de um dos menos incapazes dos herdeiros: chamar de volta o chefe dos feitores, Capitão Teotônio Virgulino, homem de fibra, caráter e poder de mando, para administrar o imenso patrimônio.

Atendendo ao chamado, Capitão Virgulino consentiu em voltar, mas quis carta-branca para administrar como nos tempos de Herr Fritz, de quem havia sido o braço direito. A proposta foi aceita e a ele foi entregue toda a administração das cinco fazendas.

Investido do antigo poder, o Capitão fez voltar o regime de trabalho forçado, quase igual ao regime da escravidão. Também foram contratados muitos trabalhadores brancos, pois já começavam a chegar famílias de outras regiões e até da Europa, deslocados pelas dificuldades no velho continente. Com isto, a produção voltou aos níveis de outrora, e com ela, a prosperidade geral.

Aconteceu um grande processo de miscigenação. Dos casamentos e coabitações entre negros e brancos pobres, trabalhadores nas lavouras, originaram-se mestiços de todas as gamas. Um processo que iria se multiplicar por todas as regiões do Brasil onde a escravidão foi decisiva para o desenvolvimento.

Quando a Lei do Ventre Livre e a Lei Áurea foram editadas, a liberdade para os negros já vigorava há anos nas fazendas deixadas por “seu Fritas”. E, por certo, a queima de arquivos promovida por Rui Barbosa não atingiu os herdeiros do sábio bávaro que, fugitivo na Europa, trouxe para o interior do Brasil os princípios de liberdade para todas as pessoas.

ANTONIO GOBBO – Bhte., 9 de dezembro de 2006

Conto # 412 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 20/09/2014
Reeditado em 20/09/2014
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