A PORTA DO LADO LESTE
A PORTA DO LADO LESTE
Jair Martins
Século XVIII, povoado de Arnis na Alemanha, na rica região da Eslésvico-Holsácia, existia uma comunidade de pessoas provenientes de Posen, na Polônia, formada por poloneses e judeus. Em uma de suas colinas, podia se avistar uma casa do século XVI, com grandes portas e janelas, habitualmente fechadas, e de fachada exuberante em estilo bechamel. Uma única porta era aberta todos os dias a partir das 4h00 até as 17h00; E assim treze horas aberta. Esta porta dava para o leste e era pintada na cor azul escuro, como todas as outras portas e janelas e de todas as casas da comunidade. Todas as manhãs uma senhora idosa, envolta num chalé lilás e calçada com meias grossas e chinelos, saía por esta porta com um balde cheio de sementes de trigo para alimentar as galinhas, os gansos, os pombos e algumas aves que costumeiramente resolviam ali pousar. Lá embaixo, na estrada, transeuntes, indo para o trabalho na lavoura, outros para a praça do comércio, ou para o mercado da pesca, acenavam com a mão, num cumprimento de um “bom dia”, no que ela respondia sempre: - Diese soll deine Weg zurück sein _ “que seja esse o seu caminho de volta”.
A boa senhora era uma figura nostálgica. Sempre sozinha. Vez ou outra no final da tarde, um gato malhado preto e amarelo, um tanto esquisito e preguiçoso, roçava em suas pernas como a pedir-lhe algo. A senhora entendia bem, tanto o seu roçar como o seu miado, e de pronto o acariciava, pegava-o nos braços e o conduzia ao celeiro de grãos que ficava aos fundos da casa. Lá chegando, havia a espera uma vasilha com leite e peixes crus. Bem alimentado o bichano, espreguiçava-se e dormia entre as palhas de trigo por horas.
Terminado esses primeiros afazeres do dia, a senhora recolhia-se ao interior da casa, e ia cuidar de sua alimentação; uma canja como prato de entrada. Com a lenha já queimando no fogão e assava o pão de preto para fazer as torradas. Uma salada de hortaliças acompanhava sua canja. Esse era o seu trivial do cotidiano. À tarde, sentada em sua cadeira preferida, tricotava uma esteira, confeccionada de palhas de trigo. Um verdadeiro trabalho artesanal que parecia não ter fim. Era como se a cada ponto dado, ela amarrasse aquele dia, e ao tempo que o trabalho estendia-se em comprimento, deixava a impressão dos longos dias que formaram a sua vida, traçados com arte, no emaranhado de belos desenhos; na vida seus atos.
O celeiro que mantinha na propriedade, era arrendado a um senhor judeu, que guardava grãos colhidos de sua lavoura para comercializar com os pescadores. Isso ocorria de quatro em quatro meses, dependendo da safra. Até então, o armazenamento era mantido sem movimento, o que veio a prolongar-se por meses, daí então, o judeu nunca mais foi visto. Foi tido como desertou por motivos políticos da época. E o celeiro passou a ser a dispensa da casa.
Quem de longe olhava a colina pela manhã até ao meio dia, era de uma beleza impressionante, Esta, reluzia, mediante sua posição direta com o nascente. O sol banhava aquela casa, fazendo-a parecer uma grande bola de ouro. A porta azul que sempre se encontrava aberta, raios a penetravam, desenhando de dentro pra fora um grande resplendor como a perfurar o espaço. Era assim que a casa da colina era vista pelos transeuntes.
Ao cair da tarde, o sol se despedia galanteador, saudando a noite com o magnífico das suas cores repousadas nas nuvens que marcavam o horizonte.
A casa da colina recolhida ao seu interior, nada deixava transparecer. Mais, na porta ao leste, era possível se observar uma lamparina acesa com uma tênue luz.
Numa certa noite, a figura de um homem atravessou o vale plantado de alfazema. Após quilômetros percorrido o andarilho, exausto e faminto, sem rumo certo, com a angustia de encontrar-se perdido, o deixando ainda mais desesperado. Ele saíra de sua terra buscando de rosto livre ao vento, encontrar uma definição para a vida. Situações adversas, o levaram a tal decisão. Fugir para ele seria anular toda e qualquer situação problemática. Ao avistar de longe a tênue luz vinda da casa da colina, dirigiu-se à ela como a obedecer a um chamado. Chegando lá, não ousou bater, já era madrugada. Ali permaneceu quieto. Estar sentado junto a uma porta de residência, depois de tantos dias ao léu, já era confortante. A porta com certeza iria se abrir, e assim pensando adormeceu.
Algumas horas depois amanheceu. Os primeiros raios de sol o despertou, e ele temeroso com a reação do morador daquela casa, afastou-se, e observou quando aquela senhora saiu com seu balde cheio de trigo, como a procurar algo, e ele sentiu sua preocupação em não ver aos que alimentar. Passado alguns minutos, timidamente se aproximaram as galinhas, os gansos e alguns pombos. Então ele percebe que é o intruso. Os animais que são cautelosos, o estranharam, e não se aproximaram como de costume. Somente com a presença da senhora é que foram se achegando. O gato, que só aparecia no final da tarde, também chegou não roçando sua perna como sempre fazia, mais agora, miando de forma agoniada. A senhora, estava achando tudo aquilo muito estranho, quando ao levantar sua vista vê o pobre homem peregrino, e lhe pergunta: - o que deseja? Ao que ele responde: - um lugar para repousar e depois prosseguir minha caminhada. A senhora lhe faz um sinal com a cabeça e o convidou para entrar.
Já no aconchego da casa, ela lhe ofereceu um chá quente e uma torrada de pão preto. E muito enfática diz: - Me conte sua história. Ao ouvir o relato de alguém que perdeu o prumo dos passos na estrada da vida, por preocupar-se em apanhar as pedras que lhe feriram, ao invés de usá-las como apoio, e do calcário, o pó para sarar as feridas, a senhora lhe falou: - Tudo que no caminho encontramos faz parte desse caminho. A dificuldade não estar na remoção das pedras ou no fechamento aparente da trilha, e sim em compreendermos que esses encalços são condutores de portas que nos conduzem a outros caminhos; Existem caminhos dentro de caminhos. Se, houver em nosso interior reserva de luz, logo avistaremos a reta de um novo rumo. Das histórias nascem outras histórias e histórias se encontram com histórias. E continuou: - Uma família judia de origem polonesa, de cinco componentes; pai, mãe e três filhos menores, sendo dois meninos e uma menina caçula, moravam num vilarejo de pescadores numa cidade aqui vizinha. Em tempo de pescaria, o pai saía sempre à noite. Era o seu trabalho, o seu ganha pão. Ele levava seus dois filhos, ainda tenros, para aprenderem logo cedo a dignidade do trabalho. Escola não havia na localidade. Eram sábios e não informados. Geralmente passavam uma semana fora. A menina ficava em companhia da mãe, que passava os dias a cuidar da casa, dos canteiros de verduras, das plantas medicinais e ornamentais. Após uma semana fora, de volta para casa, o patriarca daquela família chegava saudoso e muito feliz com o resultado de seu trabalho. Alguns peixes iam para a secagem ao sol e no sal, e em seguida vendida ou trocada por grãos. Era o sustento da família a venda do peixe, das hortaliças e das plantas medicinais. Eram felizes assim, até que um dia, um homem de aspecto esquisito, austero e rude, se achegou aquela casa com pretensões de negociar a compra da propriedade. O velho pai disse que não estava à venda, mais o homem insistia com prepotência, causando desconforto. Foi então que o velho pai elevou à mão a cabeça em sinal de impaciência e convido-o a retirar-se de sua propriedade dizendo: - Seus ouvidos não entendem o que eu falo. Por favor, não seja mais esse seu caminho de volta. Irado o homem se foi, deixando preocupação. A leitura feita em sua fisionomia, dizia que ele iria voltar, por não saber ouvir um “não”.
Passado alguns meses, em uma madrugada, quando todos dormiam, aquela família foi surpreendida por labaredas, que se espalharam por toda a casa, vindos a destruí-la com todos que nela se encontravam. Porém naquela noite do acidente, a menina não estava na casa, tinha ido passar uns dias com uma amiga da família recém convertida aos ensinamentos luteranos, a grande revolução religiosa que desafiou a autoridade papal da Igreja Católica Romana. A aceitação dessa nova compreensão bíblica, fez com que essa família cresse numa nova Alemanha. Assim permitiu que a menina recebesse a doutrina para os novos tempos. Mal sabiam que essa decisão, era a porta para a continuidade da existência da filha, (A mulher faz uma pausa, e com voz ainda que embargada, mais firme), e revelou: - Esta menina é a mulher que lhe fala. O estrangeiro diante daquela revelação quis pronunciar-se, mais a mulher disse não concluí; e prosseguiu: - Depois da tragédia, um longo período de silêncio acomodou o coração esfacelado daquela menina, que por muitos anos ficou sobre os cuidados de outros.
Certo dia, na estação da primavera, em que as borboletas saltitam nos jardins, exuberando beleza, e em seus vôos de assedio as flores escrevem uma mensagem, lida e compreendida somente pela alma, essa menina leu a mensagem trazida pelas borboletas de que a vida pode ser redesenhada, somos nós que decidimos nossas atitudes. O passado já fora construído, ele é apenas lembrança. O tempo a ser usado será sempre o hoje, e que as nuvens nubladas descarregam em trovoadas grandes porções de energia e água, presenteando a terra um novo florescer. Quem com as enxurradas se foram, é porque não mais havia neles representação. Dito isto, o estrangeiro fez a pergunta que não quer calar: - Como chegou até aqui? A mulher levantou-se foi até um velho baú, retirou de lá uma foto de uma mulher e disse: - Essa criatura viveu sua história de vida para que eu pudesse contar a minha. Após ela ouvir da menina a mensagem das borboletas, seus grandes olhos azuis fitaram-na e lhe disse: Hoje mesmo vamos transferir nossa morada neste vale, para uma colina. Lá, iremos construir nossa casa e de cima, olhar o comportamento da vida. E admoestou: - A doutrina luterana prega o legado da fé, é chegado o tempo de a exercitarmos, de sermos usuários. Assim aconteceu. Dia seguinte subimos a colina com a dificuldade do acesso, traçando trilha, e aqui chegamos com a bagagem chamada coragem. Aos poucos fomos construindo um tipo choupana, até que um estrangeiro como você, acompanhado de sua mulher, surgiu pedindo abrigo. Ele era um judeu polonês, fugindo das guerrilhas. Tinha perdido sua propriedade. Este homem ficou por muito tempo em nossa companhia. Formamos uma família. Aos poucos a nossa choupana foi se transformando numa casa de arquitetura polonesa. Como tudo tem seu tempo de presença, a senhora que me adotou veio a falecer por uma chaga, peste da época, poucos anos depois, aquele casal que conosco morava, também foi acometido da mesma enfermidade. E mais uma vez eu permaneci. E conclui: - Agora compreendo que foi para lhe receber. A vida é assim; Nada nela é por acaso. Há um por que para tudo. Todos esses anos aqui na companhia de meus bichinhos sabia que algo eu esperava para poder me despedir dessa terra. A casa da colina agora é sua. Outros virão atraídos por essa história, que não é escrita no papel e sim nos anais do tempo a povir, e lida pelo sensorial do espírito, para que vidas sejam redesenhadas. O forasteiro ao ouvir tudo isso, pasmo lhe diz: - Não posso aceitar; Ao que a senhora lhe responde: - Não é escolha sua. Então o homem entende e lhe diz: - os ventos que aqui me trouxeram em uma madrugada, foram para apreciar do alto de uma colina o belo que tem cada amanhecer.
Alguns anos se passaram. O jovem forasteiro constituiu família. A casa da Colina passou a ter um aspecto de alegria. As crianças peraltas corriam brincando com os animais. A velha senhora ainda mais idosa, sentada em uma cadeira a tudo observava, ela terminara a esteira de tantos anos manuseada. Carinhosamente chamada de “bisa”, estabeleceu com aquelas crianças um relacionamento de mestra. O velho gato seu companheiro, dormia ainda muito mais que antes, agora junto aos seus pés ou sobre sua cadeira.
Numa certa tarde, aquela senhora foi até o celeiro, pegou alguns grãos de trigo, e os semeou ao lado da casa. Uma das crianças vendo a sua atitude ficou a lhe olhar e a senhora com um gesto pedindo silêncio murmurou: - Essa cerca de trigo que crescerá a volta desta casa protegerá todos vocês de um período de estiagem, e murmurou: - É a vida nos ensinando. Dizendo isto, voltou para sua cadeira. A esteira feita de palha de trigo estava dobrada ao lado, ela sentou-se e dormiu para sempre.
A sua expressão usada para os transeuntes “Seja este o seu caminho de volta”, ela também fez o seu. Caminhou na sua vida até a colina para uma visão perfeita da vida, e retornou por esse mesmo caminho, deitando seu corpo na vala do campo santo, de onde a colina é apreciada.
Água Fria, 29/08/2011