405-SEU ABÓBORA-Equivoco noturno

O nome faz o homem — e o apelido também. Zivitz Abobronovich, imigrante russo sabe, mais do que ninguém, das vantagens e desvantagens de um nome complicado e de um apelido inapropriado.

Mecânico por profissão, trabalhava numa oficina de conserto de carros em São Paulo, onde era chamado de Zé Vito — corruptela ou adaptação do primeiro nome, de difícil pronúncia para os colegas. Atendia pela alcunha, que em nada combinava com seu tipo: baixo, gordo, careca e extremamente corado. Mais apropriado seria Zé Camarão.

Solteirão, vivia sozinho. Bonachão, tinha bons amigos, principalmente entre os patrícios, cujo grupo, se não era numeroso, era bastante unido. Por isso, aceitou de bom grado o convite de Ivan Stepovicks para ser seu padrinho de casamento. Ivan namorava Nora, uma ruiva descendente de italianos, que trabalhava em São Paulo enquanto a família morava em São Roque da Serra, cidade do interior de Minas..

Zivitz comprou roupa nova para o apadrinhamento: terno de casimira azul-marinho, camisa branca de colarinho e punhos de abotoar, gravata de seda bem larga e vistosa. Um novo par de sapatos pretos com meias brancas veio a calhar, para completar a elegância do padrinho.

Ao chegarem os dois russos na pequena cidade serrana, eram aguardados na estação da estrada de ferro pela noiva e a grande família. Fizeram questão de hospedar os dois, mas como não ficaria bem ter o noivo dormindo na casa da noiva, e muito menos o padrinho, um quarto foi providenciado para ambos na casa de seu Armando e dona Julia, tios de Nora.

Armando e Julia eram irmãos, solteirões, que viviam numa grande casa, havida em comum por herança. Acolheram com satisfação os dois russos, em atenção à sobrinha, muito querida na família.

Armando era alfaiate e galhofeiro por natureza. Brincava com todo mundo, colocava apelidos, era festeiro, enfim, um homem simpático e de bem com a vida. Já a irmã era o oposto: fechada em si, só saía de casa para as missas de domingo; sistemática e implicante com a natureza do irmão, sobre o qual exercia forte ascendência. Mas, enfim, os dois viviam juntos, sem grandes alegrias mas sem percalços.

Abrigar Ivan e Zivitz alterou a rotina de dona Júlia. Acomodou-os no quarto no fundo do corredor, que tinha vista para a praça e era maior, embora estivesse do lado oposto do banheiro, o que era uma desvantagem para os hóspedes. Desvantagem que se tornou crucial, como se verá.

Zivitz gostava de cerveja, que ingeria em grandes goles. E quanto mais bebia, mais vermelho ficava. Armando, foi, com muita propriedade, logo o tratando de seu Abóbora, um tanto pelo sobrenome impronunciável, como também pela cor de seu rosto, tal e qual uma abóbora madura. O apelido pegou. Zivitz aceitou-o também na gozação e seu Abóbora ficou sendo.

Dona Júlia, nos seus quarenta anos, não era simpática nem acessível. Ainda assim, seu Abóbora achou algum encanto na vetusta senhora, e iniciou um galanteio. Tudo no maior respeito e com assédio dentro das boas condutas sociais da época, ou seja, meados da década de 1940. Armando, quando notou o arrastar de asas de seu Abóbora pela irmã, achou foi muito engraçado, e, sem ser bisbilhoteiro, espalhou o fato entre a família. O que foi de uma alegria geral, pois o celibato de Armando e Júlia era motivo de constante procura de candidatos e candidatas para ambos.

Dona Júlia, como lhe competia, recusou o assédio de imediato. O que serviu de mais lenha na fogueira dos boatos e das fofocas a respeito do “romance” entre os dois.

A curta semana em que permaneceu em São Roque da Serra, Zivitz, ou melhor, seu Abóbora, chegou ao ápice de seu romantismo. Foi na véspera do casamento, quando ele pensava estar no controle da situação, que um qüiproquó colocou tudo a perder.

Como já ficou dito, o quarto dos dois hóspedes ficava no fundo de um corredor, para o qual se abriam as portas de todos os quartos da casa. O banheiro, com todas as instalações sanitárias, se situava no lado oposto. Seu Abóbora levantava-se todas as noites para se aliviar da grande quantidade de cerveja que ingeria habitualmente. Na noite de sábado, durante a festa do casamento, misturou cerveja com outras bebidas e foi dormir visivelmente embriagado. Alta madrugada, levanta-se para ir ao banheiro, passando pelo corredor escuro. Na volta, ainda meio zonzo pela carraspana, perde a direção do quarto e entra inadvertidamente em outro quarto. Justamente no quarto de Dona Júlia.

Ela roncava alto, mas ele nem ouviu...ou será que ouviu? Deitou-se cambaleante. Foi quando notou que havia outra pessoa na cama. Tudo aconteceu num repente. Ele procurando sair sem ser notado, ela acordando e gritando

— Socorro! Armandinho, corre aqui! Tem alguém no meu quarto! Vem depressa!

Armando topou com seu Abóbora saindo do quarto de Júlia. Não houve explicação plausível. Zivitz Abobronovich recuperou-se de imediato dos últimos efeitos da bebedeira e só teve uma saída, dizendo:

— Já tou indo embora.

No seu quarto, arrumou com pressa a mala, e ainda no escuro da madrugada, dirigiu-se para a estação da estrada de ferro, a esperar o primeiro trem para a capital.

ANTONIO GOBBO

BH, 15 de junho de 2006

Contos # 405 da série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 08/09/2014
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