400-MISTÉRIO NO RIO TRACAJU-Acidente ou crime?

— Este pesqueiro tá muito ruim. Já faz mais de três horas que estamos aqui e só pegamos estes mandis que nem vale a pena limpar. — Eduardo estava desanimado.

— Quem sabe se a gente descer um pouco pela margem do rio, na direção da ponte, podemos encontrar um lugar melhor. — Sugeriu Jeremias.

— Qual o quê, sô. — Puxando a vara mais uma vez, Lilico falou com ar de entendido. — Quanto mais perto da ponte, pior.

— Por quê?

— Tão reformando a ponte e as máquina fais um baruião danado. Espanta os peixe. — Lilico é caseiro, toma conta de um rancho na beira da represa, e sabe de tudo na região. Conhece cada palmo das margens do rio Tracaju e boa parte da orla da represa. Por isso está ali, com os filhos do patrão, residentes em São Paulo, passando uns dias no rancho do pai.

— Inda ostrodia os homem qui merguia pra vê cumo é que tão as sapata da ponte, incontraram um carro que tava lá embaixo faiz num sei quanto tempo. Mais, peixe mesmo, qui é bão, sumiu tudo.

— Um carro? No fundo da represa? — Admira-se Eduardo.

— Os home falaram que faiz mais de déis ano que ele tava lá. A carcaça inferrujada, os banco num tem mais. Só tem o qui é de metar e os peneus, que num apudrece nunca.

— Cê viu? — Jeremias mostra pouco interesse, pergunta só por perguntar.

— Craro. O ferro-véio tá lá dibaixo duma ingazeira. Parece um bicho morto, cruz-credo!

— Vamos ver? — Eduardo troca o interesse na pescaria pela curiosidade em ver o achado.

— Taí! — Lilico aponta para o esqueleto de um carro, castanho-escuro de ferrugem.

— Puxa vida! — Exclama Jeremias, admirado. — Que coisa! Um carro no fundo da represa!

— Pois é. Deu o maior trabaio pros home do merguio. Diz que o carro parecia que tava amarrado na coluna da ponte, lá bem no fundo do lago.

— Deve ter sido uma queda e tanto, quando caiu da ponte. Veja que engraçado. Os vidros estão inteiros.

— Não, sô Eduardo. Oia do lado lá que ocê vai ver que o da porta diantera tá quebrado.

— Era um Diplomata. — Jeremias explica. — Quatro portas. Carro chique. Mas como é que foi parar no fundo da represa.

— Tem uma história compricada. Parece qui foi feito de caso pensado. Caso de um professor com a amante ou muié da vida,sei lá.

— Ô cara, você sabe o que aconteceu? — É mais uma afirmativa do que pergunta de Eduardo. — Conta logo pra gente!

— Tá bão. Mas é mió a gente se sentá na sombra da ingazeira, qui o calor tá aumentado. — Caso seguinte, dois ponto.

Lilico sabia da história por ouvir dizer. Analfabeto, metido sempre no rancho, só saía para fazer suas compras de quinze em quinze dias, no pequeno comércio de Paineiras. Foi nos botecos e no armazém de Totó Miranda que ouviu os pedaços do que havia acontecido há dez anos. Procurou contar tudo o que sabia, o que, evidentemente, seria a metade do que realmente acontecera.

Olavo Santiago era professor de ginástica na Escola Estadual e, nas horas vagas, treinador do Paineiras Futebol Clube, além de locutor da emissora local. Bem apessoado, alto, elegante, porte atlético, de fino trato, era atração das moças (e até de algumas jovens senhoras casadas) onde quer que estivesse. Nos treinos e nos jogos do PFC, aparecia em traje esportivo, como o dos jogadores, exibindo a musculatura e a elegância. Era um homem bonito e vaidoso e gostava de aparecer. Despertava suspiros e desejos no público feminino, admiração dos torcedores do Paineiras e ódio dos opositores. Sua figura, suas atitudes, suas maneiras despertavam sentimentos, favoráveis ou desfavoráveis. Ninguém ficava indiferente ante Olavo Santiago.

Casado, pai de dois filhos, fazia um conjunto estranho com sua mulher, Lili, baixinha, gordoca e desengonçada. Ninguém tinha explicação para uma união tão díspar, mesmo porque Olavo e Lili chegaram a Paineiras, vindos de Goiânia, já casados e com os filhos. Com toda certeza, ela fora uma jovem do tipo pequeno, mas, por certo, interessante e bonita.

O marido era fiel ao casamento, embora isto lhe custasse a recusa a assédios. Ignorava ou fazia que não era com ele, quando ouvia suspiros ao passar ou era alvo de olhares significativos. Mas, afinal, consciente de seu magnetismo pessoal, não resistiu aos sugestivos apelos de Lúcia Lombardi. A esbelta secretária da escola onde Olavo era professor se insinuou de tal forma que acabou por vencer as barreiras morais do atlético professor.

Aliás, concordou em encontrar com a fogosa moça, que assinava bilhetes comprometedores com as iniciais LL, a fim de pôr um ponto final ao assédio. Mas aconteceu o contrário, e eis os dois enredados num romance que arrastou o professor e a secretária, numa paixão desenfreada, para os píncaros do prazer.

Como costuma acontecer, os dois logo se tornaram amantes, mas souberam esconder o romance. Inteligente ele e sagaz ela, durante muito tempo os dois mantiveram secreta a grande paixão. Mas um dia...

— Quero me casar com você. — Disse Lúcia, numa tarde, estendida nua sobre os lençóis, após momentos de inebriante felicidade.

— Como? — Surpreso, Olavo, que também estava em trajes de Adão, senta-se de um supetão. — Isto não posso...

— Pode sim, querido. — Ela o puxa de volta para a cama.— É só você querer. Eu quero!

A sedução é uma arma poderosíssima, quando bem manipulada. Assim, Lúcia usou de todo seu poder para obter o que desejava.

— Separar não posso. Tenho filhos...

— Ora, querido, pense numa solução. Despache a Lili...

— O que você está dizendo? Que está sugerindo? — Ele reage, ultrajado.

— Nada, não. Querido. Não precisa ficar bravo. Só sei que te amo demais. — Enlaçando e beijando como só ela sabia fazer, arrastou o amante mais uma vez ao topo do prazer.

A idéia fora lançada. Pequena semente, que começou a brotar e cujas raizes infiltravam-se cada vez mais no cérebro de Olavo.

— Lili, vamos aproveitar as férias e fazer uma viagem. Vamos visitar sua mãe, em Goiânia.

O convite pegou a mulher de surpresa, porém a agradou em cheio.

— Ah, querido, que bom. Faz tanto tempo que não vejo mamãe. E as crianças? — As crianças eram Roberto, de treze anos e Jandira, de quinze.

— Já falei com elas, não querem ir. Ficam em casa. — Olavo já tinha preparado tudo.

Arrumaram as malas para uma estada de três semanas. Em dois dias estavam prontos. Pacotes, malas e valises encheram o porta-malas e foram amontoados no banco traseiro.

Saíram ainda de madrugada. O carro estava pesado com tanta bagagem. Olavo era exímio motorista e dirigia com perícia o Diplomata modelo 1991. Lili, embalada pelo suave ronronar do carro, entrou numa soneca.

Quando a manhã foi clareando, o sol surgindo por trás das montanhas alterosas, já haviam viajado cerca de três horas e estavam nas proximidades da ponte sobre o rio Tracaju, onde ele deságua no imenso lago formado pela represa da hidroelétrica. O lusco-fusco da madrugada foi quebrado repentinamente pelo raiar do sol, cuja luz ofuscou por momentos os olhos do motorista.

Foi um momento crucial. Cego e temendo bater na amurada da ponte, Olavo desviou o carro para a direita e pisou no freio. O carro saiu da estrada, derrapou pelo cascalho do acostamento e, embalado pela velocidade, percorreu ainda os vinte/trinta metros de terra, antes de despencar da alta barranca da margem da represa.

Lili acorda assustada. Não tem sequer tempo para saber o que está acontecendo. Emite um grito, abafado pelo mergulho do carro nas águas profundas da represa. Olavo age com rapidez. Consegue abrir aporta e sai, procurando a superfície.

Ao aflorar à tona, está exausto. Ainda assim, nada com braçadas vigorosas em direção à margem. O barranco é íngreme e tem de nadar uns cem metros, margeando o paredão íngreme, antes de encontrar um lugar para sair do lago.

Olha para o local onde o carro afundou. A superfície está lisa. De vez em quando, vê o movimento de algumas bolhas de ar vindas do fundo.

Vieram bombeiros da capital e tentaram tirar o carro. Estava com a porta do lado do motorista aberta mas sem vestígios de Lili. Estava preso nas pontas de ferro de um dos pilares que sustenta a ponte. Três dias depois, o corpo foi encontrado, arrastado pela correnteza do rio que entra pelo lago. A história de Olavo foi corroborada. Os filhos ficaram desesperados. Tentaram, a princípio, culpar o pai. Mas a dor da perda era maior, e no final, acabaram se abraçando, uns chorando nos ombros dos outros, no enterro da esposa e mãe.

A vida voltou ao normal para a família enlutada. Olavo recebeu o seguro de vida da falecida e outro, pela perda do carro. Abatido, mudou-se, com os filhos, para S. Paulo. Lúcia que, em todos os momentos da tragédia, esteve presente, amiga e solidária com Olavo e os filhos, também se mudou, alguns meses depois, coincidentemente, para a capital paulista.

— Taí a história que eu ouvi contar. — Terminou Lilico para a audiência, agora aumentada por um dos empregados da construtora que reformava a ponte.

O homem de capacete vermelho ouvira com a atenção toda a narrativa, mantendo-se calado. Quando todos se levantaram para partir, ele falou, numa voz pachorrenta e calma.

— Venham ver uma coisa interessante. — Dirigiu-se para o outro lado da ingazeira, onde estava o Diplomata retirado do fundo do lago.

— Vocês estão vendo o fundo do porta-malas? Está todo arrebentado.

— Sim. — Concordaram. — Mas o que significa isto?

— O carro teve de ser içado com o guindaste. Eu sou um dos mergulhadores que estavam lá no fundo, amarrando os cabos de aço. O porta-malas estava trancado, de forma que passamos o cabo pelo meio do veículo. Vejam as marcas aqui perto da coluna das portas. Estava muito difícil, pois o carro não se movimentava, parecia ter um lastro. Quando o guindaste levantou o veículo, o fundo do porta-mala, todo enferrujado, cedeu – e por ali saiu uma grande quantidade de pedras.

— Pedras? Admirou-se Eduardo.

— Sim, pedras. Paralelepípedos desses usados em calçamentos de ruas. Eu vi quando escorregaram pelo buraco do porta-malas rachado.

— Mas por que um cara iria viajar carregando pedras no porta-malas? — Eduardo, ingênuo, está intrigado.

— Ora, moço. Pense bem. — O mergulhador fala moderadamente. — Queria que o carro e tudo o que estava dentro dele ficasse definitivamente no fundo do lago.

ANTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 17 de maio de 2005

Conto # 400 da série Milistórias -

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 04/09/2014
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