399-A PROMESSA-Biografia de meu pai
Publicado em "Amor Sem Limites" col. 9 da Coleção Milistórias
Acordou na madrugada, com a fisgada de dor que percorria o braço, partindo do ombro até às pontas dos dedos. Até mesmo às pontas dos três dedos decepados. Apesar da diminuição das dores, com a cicatrização do enorme ferimento, as sentia com mais intensidade à noite. Tinha pesadelos, gemia constantemente e acordava suando.
— Vou te trazer uma Cafiaspirina. — A mulher levanta-se e vai buscar o analgésico.
— Não adianta. É assim mesmo. — Estóico, Pedro vira-se na cama e puxa o cobertor. — Está muito frio.
A esposa chega com um copo d’água e o comprimido. Após tomar, revira-se com cuidado para não deitar sobre a mão machucada. Tenta dormir. As lembranças o perseguem e são tão ou mais doloridas do que a mão enfaixada até o punho.
Era considerado um bom profissional, talvez o melhor da oficina na qual trabalhava. Costumava enfeitar, por sua própria iniciativa, com frontões e apliques de madeira entalhada, dando um toque pessoal aos móveis que fazia.
— Não precisa enfeitar tanto, Pedro. Não vai ganhar nem mais um tostão por isso. — O proprietário da fabrica de móveis lhe avisava.
Mas os entalhes foram se tornando marca de armários, camas, guarda-roupas, cristaleiras, cadeiras, tudo, enfim, que saía de suas mãos habilidosas.
— Quero que a minha mobília de sala seja feita pelo seu Pedro.— As mulheres dos clientes mais importantes pediam ao dono da marcenaria.
Tinha uma ojeriza pelas máquinas da grande oficina. Talvez até medo delas. Gostava de fazer trabalho à mão, com carinho, cuidando de cada peça como uma obra de arte. Talvez fosse justamente por essa falta de intimidade com as máquinas que, ao tropeçar num pedaço de madeira, metera a mão na boca da tupia, cujas facas afiadíssimas e em alta rotação, comeram-lhe três dedos e lambera a palma da mão esquerda.
O acidente se devera em grande parte à falta de cuidado de todos os colegas, com relação ao local de trabalho. As máquinas estavam assentadas muito próximas, o chão era coberto por restos de madeiras, serragem, ripas amontoadas de qualquer jeito, ferramentas esquecidas aqui e ali, às vezes até nos tampos das máquinas. Já acontecera de um martelo, esquecido sobre o tampo da serra de fita, ir de encontro à fina lâmina e lançado ao longe, arrebentando a serra e causando estragos na máquina.
Apesar de tudo, ainda tenho a mão, graças a Deus. Sofrendo dores, afastado do trabalho, sem renda, ainda assim, agradecia por não ter sido pior. O dono da oficina emprestou o valor de dois meses de ordenado, a título de “adiantamento”.
Passados três meses, Pedro voltou à oficina. A ferida cicatrizava lentamente, o ferimento fora extenso, afetara até mesmo os nervos do braço. A mão estava protegida por ataduras e o braço repousava numa tipóia rústica. Não podia trabalhar, efetivamente, mas tentava ajudar os colegas, usando a mão direita. Após três dias de sua presença na oficina, foi chamado pelo proprietário para uma conversa particular.
— Olha Pedro, acho muito importante você se recuperar totalmente, antes de voltar a trabalhar. Do jeito em que está não pode continuar. Você fica zanzando entre as máquinas, pode até se desequilibrar, cair, sofrer outro acidente.
— Mas tenho de fazer alguma coisa! O dinheiro que o senhor me adiantou já acabou, estou devendo no armazém e...
— Ah! Acho bom você retirar da oficina sua banca e a caixa de ferramentas. Precisamos de espaço para....
Pedro não quis escutar o resto.Tinha sido expulso da oficina.
O desespero já se instalada no lar de Pedro e Maria. Devia ao empório, à farmácia, ao açougue e ao médico que o atendera.
— Ai, minha Nossa Senhora das Dores! Que será de nós? Já procurei serviço de faxineira, roupa pra lavar, mas não encontro nada. Não consigo nem vender as toalhinhas de crochê.
Rezavam juntos todas as noites. A idéia da promessa foi dela.
— Vamos fazer uma promessa pra Nossa Senhora!
— Sim, mas que seja uma promessa que a gente possa pagar.
— Olhe, Pedro. Vamos prometer que, pra que você fique bom bem depressa, você faz um oratório para a capela do orfanato.
— Sim. Quando estiver bom, faço até um altar, quanto mais um oratório.
— Vamos prometer um oratório. Nossa Senhora há de te ajudar pra você ficar bom logo, logo.
Com a ajuda da mulher, desocupou um pequeno telheiro do quintal, um depósito de lenha e de trastes inúteis. Ali colocou a banca de marceneiro e a caixa de ferramentas.
— Avisa pro pessoal da cidade que estou trabalhando aqui em casa. Posso reformar qualquer móvel velho e faço por encomenda. — Pediu ao Ludovico, o charreteiro que trouxera seus pertences profissionais.
Dona Maria contou à Irmã Antônia, do Orfanato Monsenhor Felipe, a promessa que haviam feito. Quando a notícia chegou ao orfanato, todas as irmãs e as crianças que ali viviam passaram a rezar, fazer novenas e até intenções de missas, para o completo restabelecimento de seu Pedro.
Quer pelas orações, quer pela força de vontade do marceneiro, quer pela volta ao trabalho, agora por conta própria, o fato é que a cura se deu com inusitada brevidade.
— É um verdadeiro milagre! — Até mesmo o cético Dr.Teófilo reconhecia a rapidez da cicatrização.
Depois de uns poucos meses, eis seu Pedro trabalhando o dia todo, fazendo uso (moderado, naturalmente) da mão acidentada e até recusando serviços, tamanha era a demanda por seus móveis. Forçava um pouco os dedos que sobraram no manejo de formões e goivas, voltando a fazer entalhes e detalhes caprichados. Não descansa nem de noite: sobre a mesa da cozinha estende folhas de papel pardo, nas quais traceja, com finos estiletes de carvão, as volutas, as folhas de acanto e outras figuras harmoniosas que, no dia seguinte, passará para a madeira a ser entalhada.
Nem ele nem a mulher se esqueceram da promessa. Mas urgia trabalhar nos serviços acertados.
— Temos de pagar as contas de armazém, o açougue, a farmácia. Estas dívidas devem ser pagas em primeiro lugar, pois os comerciantes também têm seus apertos.
O casal concordava em fazer cada coisa no seu tempo. Com o médico fez um acerto: reformaria os móveis do consultório e faria uma mobília de sala de jantar, tudo com bastante prazo.
Passaram-se quase dois anos ates que seu Pedro se achasse em condições de cumprir a promessa. Foi quando conseguiu saldar todas as dívidas deste mundo e se voltou para cumprir com o prometido a Nossa Senhora das Dores.
Quando foi ao orfanato para conversar com as irmãs e saber das dimensões que deveria ter o oratório, foi surpreendido com uma pequena edificação nos terrenos da instituição.
— Recebemos uma doação do Comendador Ramos de Oliveira. Ele está dando o material para a construção de nossa capela. — Explicou-lhe a Madre-Diretora do orfanato. — Será a capela de nossa Padroeira, que é Nossa Senhora Imaculada Conceição.
— Bem, se tem capela, tem que ter o altar...— Espontaneamente foi falando Pedro, sem se dar conta do que estava realmente expressando.
— Sim. Um altar para Nossa Senhora. Que poderá sair de suas mãos. — A diretora não titubeou na sugestão.
A idéia deixou o marceneiro aturdido. Mas não a renegou. Sim, em vez de um oratório, um altar. Posso fazer, sim. — Pensou.
— O problema é a madeira. Não tenho dinheiro para tanto. Mas o serviço, posso sim. — Falou com a esposa.
— Vamos procurar Zezé Amaral. Ele vive fazendo campanhas através da rádio. — A idéia era extraordinária, vinda uma pessoa simples como dona Maria.
O diretor da emissora local gostou da idéia. Lançou um programa para o altar do orfanato e em poucas semanas conseguiu o necessário para a compra da madeira.
Pedro atacou de rijo. Fez tudo sozinho, desde a mesa do sacrifício até as mais elaboradas formas do altar. A madeira, trabalhada por suas mãos, tomava forma de nuvens, elevando-se na direção do teto da capela, pintado de azul e figurando o céu. Alegorias de anjos e seres celestiais entremeavam as nuvens, de onde, assentada sobre uma plataforma invisível, ascendia a imagem de Nossa Senhora.
À primeira missa, inaugurando a capela do orfanato, compareceram autoridades. Até Dom Rafael, bispo da diocese, estava presente. Ao ser cumprimentado por Dom Rafael, Pedro, que era humilde e tinha um jeito próprio de ver a vida, comentou.
— Não sou nada mais do que uma ferramenta nas mãos de Deus. E quando a ferramenta é boa, metade do serviço já está feita.
ANTÔNIO GOBBO
Belo Horizonte, 12 de maio de 2006
Conto # 399 da série MILISTÓRIAS -