396-CÁSSIO CURADOR-Vida e morte de grande curador

— Por favor, venha depressa. Papai está muito mal. — Com voz angustiada, Solange procurava transmitir a urgência de seu pedido.

— Mas, onde está ele? — Surpreso, não sabia ao menos aonde ir. — Espere um momento, vou apanhar minha valise. Entre, tome um café, enquanto me apronto.

Era domingo de manhã e estava terminando de tomar o café. Solange entrou, mas permaneceu na saleta, de pé, esfregando as mãos, numa demonstração visível de alta ansiedade. Vesti o paletó, calcei os sapatos e apanhei a maleta com os apetrechos médicos.

A moça dirigia com perícia. Mesmo assim, senti-me inseguro quando ela tomou a estrada de chão. A poeira e a luz do sol ainda baixo no horizonte diminuía bastante a visibilidade, mas ela afundava o pé no acelerador, jogando o carro para um lado e para o outro, a fim de evitar os buracos, sem frear nas curvas.

— Para que tanta pressa, menina? — Perguntei, procurando distender a tensão no cubículo do pequeno carro.

— Papai está mal. Estive lá ao amanhecer. Não se levantou, nada falou, não quer comer nada. Aceitou apenas um copo d’água.

— Pelo que sei, Cassiano não permite a entrada de ninguém em sua casinha.

— Sim. Há mais de dez anos que mora isolado lá em cima do morro. Só eu posso visitá-lo. Mesmo assim, só posso entrar quando a placa no alpendre me permite.

— Placa?

— Sim. Quando ele quer me receber, coloca uma placa na varanda. Ele mesmo escreveu, em letras grandes. ENTRE. Passo todos os dias defronte à casinha, vindo da fazenda para a cidade. Quando, de longe, vejo a placa, deixo o carro na porteira e chego até a casa. A porta está aberta e invariavelmente papai está sentado na salinha.

— E hoje...?

— Levantei-me cedo, bem de madrugada, com uma premonição, uma intuição. Papai precisa de alguma coisa, pensei. Fui até lá, e embora a placa não estivesse à vista, entrei assim mesmo. A porta estava entreaberta. A casa, deserta. Fui até o quarto, onde encontrei papai respirando com dificuldade, os olhos saltados, parecia sufocado. A roupa empapada de suor. Tremia de frio. Troquei imediatamente sua roupa, e a roupa de cama. Fiz um chá, esquentei o leite, mas ele recusou. Só tomou um copo d’água. A respiração voltou ao normal e ele entrou num cochilo. Por isso fui buscar o senhor.

Solange era a única filha de Cassiano de Oliveira, conhecido em toda a região como Cássio Curador. No seu rosto oval, os olhos amendoados, lábios carnudos e nariz um pouco achatado, estava registrada sua origem genética: certamente sua mãe fora uma índia.

Conhecia bem a história do pai, no que fosse possível saber de uma vida cheia de mistérios. Havíamos sido colegas de ginásio e no curso científico. Eu estudava com afinco para o exame de medicina. Cássio, entretanto, não tinha objetivo definido. Introspectivo, dado a longos silêncios, não gostava das matérias necessárias para um bom desempenho no vestibular. Não estudava química, odiava matemática e redigia mal.

— Sei bem o que não serei. Cirurgião, jamais. Não agüento ver sangue.

Gostava, entretanto, de analisar professores e colegas, e quando se abria (como fazia comigo, um de seus poucos amigos), mostrava-se um verdadeiro psicólogo. Tinha um pendor para descobrir coisas, achar objetos. Numa época em que a parapsicologia estava mais para “coisa de espiritismo”, suas faculdades eram mal interpretadas e ele era um “sujeito esquisito”.

Não terminou sequer o curso científico. Num período de férias, acompanhou alguns sertanistas em viagem à região dos índios Xavantes, na selva amazônica. Nunca mais voltou à faculdade. Sumiu do mapa. Cerca de vinte anos depois, soube que ele havia voltado. Trazia consigo uma filhinha. Não tive tempo para encontrar-me com ele, pois minha clínica e as atividades no hospital da cidade não me deixavam um segundo livre.

Entretanto, me chegaram certas informações de que Cássio estava atendendo clientes em sua casa, praticando uma espécie de curandeirismo. A princípio, nós, os médicos, não demos importância. Aliás, circularam até algumas piadas e gracejos a respeito de Cássio. Contudo, as notícias das curas praticadas por Cassiano circulavam insistentemente e o homem começou a ser conhecido como Cássio Curador.

Por uma questão de ética, procurei ignorar o meu antigo colega e amigo. Apesar disso, informações sempre chegavam, até com detalhes, de sua prática terapêutica. Alguns clientes meus que foram consultar com o curador disseram-me que ele nada indagava do consulente. Apenas olhava intensamente nos olhos, enquanto segurava as mãos.

— Seu olhar é profundo e encravado em órbitas escuras, parecem dois diamantes. As mãos são frias como a de um cadáver, cruz-credo! — Disse-me Agnaldo Lopes, um cliente idoso, que procura cura para seus males onde quer que haja um terapeuta. — E depois, escreve a consulta num papel de caderno. — Mostrou-me uma “receita” escrita com letras quase ilegíveis.

As novas das curas de Cássio Curador se espalharam e, não demorou muito, sua casa ficou pequena para abrigar todos os consulentes. As filas se estendiam pela calçada e pela praça fronteiriça. Todos os dias, uma pequena multidão estava a postos defronte à casa do misterioso terapeuta.

Nada cobrava pela consulta, mas passou a receber donativos das pessoas que curava, e até mesmo por antecipação. Para as pessoas carentes de uma palavra amiga, de um conselho ou de uma receita, ainda que de remédios paliativos ou fortificantes, parece que um donativo por antecipação poderia garantir a cura.

Sem querer, fiquei sabendo que a prosperidade chegou ao Cassiano. Comprou uma casa maior, e, alguns anos depois, uma fazendinha na serra da Canastra. As “curas” continuaram até que, não sei por que motivo, Cassiano parou de atender e se retirou para sua propriedade rural.

Dei graças a Deus por chegar inteiro à pequena fazenda de Cassiano. Após a porteira da entrada, a estrada era ladeada por renques de álamos-vela, essa árvore de belíssimo porte, esguia e altaneira, balançando-se suavemente à brisa da manhã. Em vez de se dirigir à casa-sede, uma enorme construção assobradada, construída ao tempo dos escravos, Solange guiou o carro para o topo da colina, onde uma casa modesta, de madeira, entrevia-se entre os álamos.

— Papai nunca morou na casa-grande. Mandou construir esta casinha aqui no topo do morro. É o local mais elevado de toda a região. Mora aí, sozinho, com seus poucos livros e cultivando a horta. Nunca quis receber a visita de ninguém. E só posso entrar na cabana quando ele coloca no alpendre a placa.

— Mas, e a comida, a limpeza da casa, as roupas? — Atrevi-me a perguntar.

— É outro mistério — Explicou Solange. — Parece que uma mulher vem limpar a casa e ajudá-lo. Dizem que é Maria Xanga, uma preta que já morreu faz tempo. Eu nunca vi. Mas a casa está sempre limpa, a roupa também. Sempre que entro na casa, está tudo bem arrumado. Zeca Frejó, que trabalha há muitos anos na fazenda, diz que já viu e que é a tal da Maria Xanga.

Finalmente, chegamos à entrada da casinha. Situada no topo do morro, estava totalmente cercada por álamos, que formavam um bosquete e tornavam o sítio sombreado. Encostada no chão do alpendre, estava a placa: uma tábua de madeira, quadrada, de aproximadamente um metro de lado, com as letras grandes pintadas com tinta preta: ENTRE.

Entramos. Solange ficou surpresa com o que viu. Seu pai, sentado numa poltrona, recostado, recebia a claridade da janela.

— Papai! O senhor está bem?

Esboçando um sorriso, o velho olhou primeiro para a filha e depois para mim. Estava muito acabado. Devia ser da minha idade, uns sessenta anos, mas sua aparência era de uns vinte anos mais velho. O rosto muito enrugado, ralos cabelos brancos compridos que lhe chegavam ao ombro. A barba, também muito branca, descia até o peito.

Mas os olhos! Quando percebi o lampejar daqueles dois brilhantes, notei algo sobrenatural. Sou cético, minha formação me força a analisar com mente fria tudo o que vejo ou escuto. Porém, a força daquele olhar, que, ao mesmo tempo, abrandava todas as rugas e realçava o sorriso tranqüilo, me impressionaram de tal forma que deixei de racionalizar sobre Cassiano.

— Então, meu caro! — Ele falou, a voz firme e clara. — Como é que é? Você está bem?

Tomei-lhe as mãos. Frias como gelo.

— Eu é que lhe pergunto: como é que está passando? Solange me disse que você estava precisando de ajuda.

— Que nada. Foi apenas um sufoco, passou já faz tempo.

Abri a valise e peguei o estetoscópio. Pretendia auscultar seu coração, verificar a respiração, mas Cássio foi categórico.

— Deixa disso, amigo. Estou bem. Sente-se aí, vamos conversar.

E dirigindo-se à filha:

— Solange, traz aquele chá que você fez há pouco. E no armário tem uns bolinhos de mandioca que fiz ontem. Traz aqui, para o doutor.

Nem bem a filha desapareceu em direção à cozinha. Cassiano começou o que considero a sua confissão final. Descansando a mão esquerda no meu antebraço, foi falando em voz mansa porém clara e tranqüila.

— Na verdade, estou de partida. Já vejo o portal que vou atravessar para outra dimensão. Há muito anos que estou vivendo horas extras neste mundo. Mas tudo tem seu tempo, não adianta tentar mexer neste relógio interno que nos norteia. Não adianta tentar protelar o que tem hora marcada para acontecer.

— Sua filha está preocupada com você. Encontrou-o sem ar, hoje de madrugada.

— Solange se preocupa à toa. Quando chegar a hora, que está próxima, vou sem alarde, não vou dar trabalho pra ninguém.

— Você pelo menos poderia ir para a casa-grande. Solange cuidaria melhor de você. Eu mesmo quero visitá-lo periodicamente.

— Pra quê? Vocês, médicos, interferem muito nas vidas das pessoas. Pensam que as estão ajudando, dando-lhes mais algum tempo de vida. Cortam, costuram, trocam órgãos...Isto tudo está errado, cada pessoa tem sua sina gravada na mente. Somos todos predestinados.

— Você é curador, Cassio. Está renegando a própria faculdade de curar?

— Nunca curei ninguém. A verdadeira cura está no interior de cada um. Quem procura um médico, um curador, uma benzedeira, é porque quer ser curado. Nesta procura, o processo de cura já está começado. Os terapeutas devem apenas ajudar o paciente. Jamais intervir na natureza humana. O indivíduo é seu próprio curador – ou seu próprio carrasco.

— Nossa missão é...— Tentei intervir.

— Ah! O que é ensinado nas escolas, nas faculdades! Tudo balela. Nenhuma cura se faz sem amor. Vocês pensam que têm sucesso nesta ou naquela cirurgia, num tratamento ou num transplante. Certo, por algum tempo, enganam o corpo do paciente, mas logo chegam outros problemas, que se sobrepõem ao inicial, e a cura é aparente.

— Por que você deixou de atender aos pacientes?

— Porque meu tempo de ajuda acabou. Tudo tem seu tempo certo, sabia? Agora, meu tempo neste plano terrestre também já está no fim.

Mudando de posição na poltrona, troca o tom de voz.

— Sua vinda aqui não é ocasional, como pode parecer. Pensei em destruir meus cadernos, onde registrei boa parte de minha vida, principalmente quando convivi com os índios. Mas tem muita informação útil para quem quiser aprender. Você acha que ainda tem alguma coisa para aprender?

— Sim, todo dia temos que aprender alguma coisa. — Respondi.

Solange chega com uma bandeja com xícaras, bule e um prato com bolinhos, que coloca sobre a mesa.

— Solange, minha filha, você sabe do valor que atribuo aos meus escritos. Estou passando todos para o nosso amigo, o doutor aqui. Sei que ele fará bom uso disso.

Assim dizendo, levantou-se, foi até a pequena estante, tirou um dos cadernos de capa dura, que aparentava ter sido muito manuseado. Volta-se. Seus olhos brilhantes me fixam como faíscas brancas. Dois diamantes na órbita funda. Senta-se novamente e me entrega o volume.

— Sim, você fará bom uso disto tudo.

Quando seguro o caderno, sinto a sua mão afrouxar e descambar. Solange pressente algo e grita.

— Pai! Papai! Não vá!

Olho para seus olhos. Os diamantes se apagam.

ANTÔNIO GOBBO –

BELO HORIZONTE, 2 DE MAIO DE 2006

CONTO # 396 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Pbulicado no livro "Senhora das Coroas"

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 01/09/2014
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