395-LEGADO NUCLEAR-Drama da Usina Nuclear de Chernobil

(publicado no livro "Legado Nuclear")

Minha resistência está se esgotando. O pensamento insistente e insidioso entranha minha mente. Para que continuar esta vida de sofrimento e angústia? Vida de dor, muita dor, por todo o corpo, nos músculos, nos ossos, nos órgãos internos e nas pústulas que se espalham pelo corpo.

Estou piorando a cada dia. O que pensava ser o pior, piorou ainda mais. E a visão de corpos boiando na correnteza do rio me desperta pensamentos lúgubres. Desejo inconfessável de pôr um fim, dar um basta a esta vida miserável e sem esperança.

Voltei de minha caminhada matutina (na verdade, de madrugada, antes do nascer do sol, cuja claridade é insuportável aos meus olhos) decidida a terminar de vez. Só falta a coragem de tomar o passo decisivo, derradeiro, final.

Deixarei estes cadernos manuscritos para quem ou para quê, não sei. De certa forma, constituem uma motivação. Escrever todos os dias, registrando a tragédia que se abateu sobre minha vida – semelhante a milhares de outras vítimas – me dá um certo alento. Representa ainda uma chama que, parece, está prestes a se apagar.

Só algum tempo depois do desastre é que comecei estas anotações. Por não ter o que fazer, para ajudar a preencher as longas horas de ócio e de inutilidade. Mas procurei registrar tudo, procuro ser fiel às minhas lembranças.

Meu corpo padece e encolhe,enquanto minha mente está cada vez mais clara e a memória intensificada. Por isso, escrevo sobre o cataclismo desde o começo real, sendo que naqueles primeiros momentos ninguém tinha idéia da gravidade do fato.

As manhãs do início de primavera costumavam ser bem frias, mas aquele dia fatal amanheceu quente de maneira inusitada. No meu caminho para a escola primária de Pripyat, encontrei-me com alguns colegas., que comentavam sobre estranho barulho na madrugada.

— Você ouviu? — Alguém me perguntou. — Foi aí pelas duas horas. Um estrondo e tanto.

— Não, nada ouvi. — Respondi. — Dormi como uma pedra.

A aula da manhã estava quase no final quando o diretor nos avisou que as crianças estavam dispensadas das aulas da tarde e deveriam voltar imediatamente para suas casas.

— Houve alguma coisa séria na usina de Cherno — Falou, sem entrar em detalhes. — Todos os professores estão dispensados até segunda ordem.

Voltei para casa. Na rua, quase ninguém. Todo mundo se trancara em casa. Morava com minha mãe Marinska e meu irmão Guldov, operário em uma fábrica mais ao norte de Pripyat. Não soube explicar à minha mãe a causa da dispensa do trabalho. O rádio também nada noticiava a respeito.

Ao anoitecer, batidas na porta de casa. Um funcionário público do serviço de saúde, entregando frascos com pílulas.

— São comprimidos de iodo. Tomem um de oito em oito horas. E permaneçam dentro de casa. — Falou com autoridade, sem responder às minhas perguntas.

Guldov chegou já bem de noite, com novidades.

— Parece que a usina explodiu. Coisa muito grave. Passei por perto. E vi uma nuvem de fumaça que escondia toda a usina. Vi labaredas no meio da fumaça, mais altas que a torre da usina.

No rádio, confirmações da ordem para que todos os moradores da cidade e da região permanecessem em suas casas, com portas e janelas fechadas. A noite que se seguiu foi de angústia, ansiedade e calor...muito calor.

No dia seguinte, antes de amanhecer, fomos avisados, pelo rádio, que havia ocorrido um acidente na usina nuclear de Chernobyl e que toda a cidade seria evacuada. Com a notícia, vieram os ônibus: iam levar a gente para lugar seguro. Fizemos as malas rapidamente, só com roupas e coisas essenciais, pois cada pessoa poderia levar apenas uma mala.

Consegui embarcar com minha mãe e meu irmão pelas duas da tarde. O ônibus tomou destino ignorado. Soube mais tarde que, naquele dia, mais de mil ônibus foram usados para evacuar a cidade que, ao anoitecer, estava totalmente vazia.

Nos próximos dias, semanas, meses, é que nos foi sendo revelado, aos poucos, o que realmente havia ocorrido: uma grande explosão do reator da usina nuclear de Chernobyl havia deixado vazar radiação por uma imensa região ao seu redor, que ia muito além da nossa pequena cidade.

Para mim, como para todos os “refugiados”, a vida ficou sem sentido. Fomos levados para Kiev, onde ficamos inicialmente em escolas e edifícios públicos. Em menos de um mês, eu, minha mãe e meu irmão, fomos transferidos para pequeno apartamento onde estou até hoje. Meu irmão voltou para Kiev, mamãe morreu. Estou só com minhas lembranças e meus cadernos.

Tinha completado trinta e seis anos, naquela ocasião. Pesava 87 quilos, mas não era gorda, pois minha estatura era de quase um metro e noventa. Gozava de saúde, não me lembrava da última vez em que tivera uma gripe ou qualquer coisa assim. Era alegre, bem humorada, gostava de meu trabalho como professora, entre as crianças de três, quatro e cinco anos.

Em Kiev, comecei a emagrecer. Os exames periódicos para verificar o grau de contaminação e seus efeitos em meu corpo acusavam pouca ou nenhuma radiação. Glóbulos brancos e vermelhos em equilíbrio. Mas emagrecia sem parar. Em um ano, perdi dez quilos. Alguns anos (dois, acho) depois, comecei a sentir fortes dores de cabeça, o cabelo ficou branco. Os dentes ficaram fracos nas gengivas, sangrando constantemente. Com o passar dos anos, continuei emagrecendo e agora peso cinqüenta e três quilos. Sou um palito, em comparação com a mulher encorpada de vinte anos atrás.

O pior desta situação é a rejeição que sinto, que paira sobre todos nós, evacuados daquela região tenebrosa. Recebemos, sim, ajuda do governo, como moradia, remédios, móveis e utensílios, até mesmo roupas e calçados. É uma forma de compensar pelo nosso exílio e nossos sofrimentos. Afinal, deixamos tudo para trás, até nossas vidas. Entretanto, com isso não se conformam os habitantes da cidade, que nos vêem como privilegiados. Isto dói, dói muito.

Não saio de casa senão para o essencial. Meu corpo está horrível, não só pelo emagrecimento como pela deformação dos ossos e pelas dores terríveis. Perdi cabelo e estou quase careca; por isso uso, constantemente, um xale que me cobre a cabeça e o rosto. Não quero ser motivo de curiosidade ou chacota.

A pensão do governo é suficiente apenas para o essencial. Não trabalho. Nos primeiros tempos de Kiev procurei trabalho, por simples e humilde que fosse, mas nada encontrei. Fui tratada como uma pessoa maldita, um pária, portadora de doença contagiosa.

Desisti de procurar trabalho ou qualquer atividade fora de casa. Desisti de sair para conversar até mesmo com os outros “refugiados”.

Aos poucos, estou desistindo de tudo Permaneço fiel à escrevinhação destas notas em cadernos. São muitos, talvez quinze ou vinte, sem sei mais.

Nesta primavera tenho saído de casa bem cedinho, antes do amanhecer. Sinto necessidade de caminhar, após os meses de inverno, trancafiada no apartamento. Passo sempre pela ponte, sobre o rio. Caudaloso devido ao degelo nas montanhas ao norte, corre com forte marulhar.

Minha vista está péssima, mas mesmo assim consigo ver corpos boiando, levados pela correnteza.São pessoas desesperadas, como eu, que não suportam mais tanta dor — no corpo e na alma.

A tentação é grande, falta coragem para acompanhar aqueles seres decididos. Meu único vínculo com o mundo é esta escrevinhação. Sinto que este último contato está se esgarçando. No dia em que parar de escrever, terei coragem de tomar o passo decisivo.

Hoje faz exatamente vinte anos que a usina de Chernobyl explodiu. E concluo que é inútil continuar escrevendo...

ANTONIO GOBBO –

Belo Horizonte, 26 de abril de 2006.

Conto # 395 da série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 01/09/2014
Reeditado em 01/09/2014
Código do texto: T4945712
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