A Escolha

“Cheguei, amor”! “Amor, tá se escondendo porquê?” “Amor! Amor, não!”

Lá estava ela, caída no chão do seu quarto, ainda de camisola branca e rendada. Suas pernas estavam entrelaçadas, mesmo estando desfalecida. Deve ter deitado lentamente enquanto esgotavam seus pulsos. Havia sangue por todo seu corpo, até nos compridos cabelos negros que ele tanto gostava.

Carlos ajoelhou-se ao lado de Bela, colocando a mão em seu pescoço para sentir a pulsação, mas sentiu repulsa e encolheu-se como um bichinho assustado. Ela já estava sem vida e com o corpo rijo e gelado. Ele a olhava perplexo. Como ela teve coragem de ir embora? Tocou em seus cabelos sentindo os fios grudados uns nos outros. Agarrou-a puxando para seu colo e chorou por um tempo, suficiente para que adormecesse sentado no chão com a cabeça em cima de Bela.

Quando abriu os olhos, Carlos pensou ter sonhado e sorriu ao sentir a esposa perto. Tentou se levantar e viu que o pesadelo era real. Pegou o celular no bolso da calça e ligou para a emergência. Enquanto aguardava o socorro, olhava para Bela e dizia: “vai ficar tudo bem, eu prometo”! Mas ele sabia que não tinha mais nada a fazer, fechando os olhos lembrou do dia em que a conheceu.

Estavam na fila do supermercado e ela ,com pressa, mexia o pé sem parar debruçada no carrinho atrás dele. Irritado pelo ruído que ela fazia, virou para trás para reprimí-la e ela então sorriu. O que ele poderia fazer, senão sorrir de volta? Cedeu lugar a ela, perguntando seu nome e telefone.

Em poucos meses estavam morando juntos. Ele trabalhava em uma empresa, o dia todo, enquanto ela adorava escrever. Vendia poucos livros, mas nunca reclamava, pois gostava de suas próprias histórias. Bela era jovem e brincalhona, tirando os dias de TPM. Viviam, na maior parte do tempo, felizes.

De uns dois meses para cá, ela vinha perdendo o brilho nos olhos e o largo sorriso no rosto. Ele perguntava o que acontecia de errado, então ela respondia: “nada”. E chorava abraçada a ele. Carlos costumava ler todas as histórias que Bela escrevia. Notou que estavam se tornando contos tristes e trágicos, apesar de serem lindos. Pensou que era coisa de escritor, a mudança de estilo na escrita.

Hoje, no trabalho, Carlos não parava de pensar em Bela, sentindo-se preocupado com ela e curioso com o último conto que ela escreveu. Procurou um amigo, psicólogo na empresa, que lhe aconselhou levá-la a um especialista, por não ser normal a brusca mudança no comportamento dela, ainda mais que ela era independente, bem resolvida nas questões familiares e aparentemente feliz na união com Carlos.

Voltando para casa Carlos lembrava do que tinha lido. Era uma breve história sobre dois jovens apaixonados, a moça descobriu que o rapaz estava morrendo, mas ele não sabia. Ela, com o exame dele nas mãos, sentou-se em um banco da praça e escreveu um bilhete para ele: “Vou te amar sempre e sempre, mas preciso partir, não suporto a dor da angústia. Só saiba que vou embora pensando em você, que foi meu primeiro e último pensamento durante todos esses anos”. Num ato de desespero, ela se jogou na frente de um carro e enquanto morria, olhava o vento levar o bilhete que estava em suas mãos.

Carlos iria conversar com Bela naquele dia. O tempo foi mais rápido do que ele. Será que aquele bilhete era para ele? Ela chorava enquanto ele lia, mas ela chorava todos os dias, ele não percebeu.

O jovem despertou de seu desespero e dúvidas com a chegada do socorro. O médico pediu para que ele se afastasse, colocando a mão na linda jovem, balançou a cabeça para o enfermeiro que aguardava para colocá-la na maca. “Sinto muito, ela está morta”! Disse o médico olhando para Carlos.

Muito controlado emocionalmente, Carlos ligou para seu amigo, que o aconselhara pela manhã, pedindo para que tomasse as providências necessárias.

A adorável Bela desejava realmente morrer. Os cortes eram profundos em seus pulsos. Segundo a perícia, ela cortou o primeiro e depois colocou a faca entre as pernas para firmá-la e passou o outro pulso. Carlos revirou toda a casa em busca de alguma explicação. Não encontrou nenhum bilhete ou exames.

Foi até a escrivaninha dela e pegou os últimos rascunhos. Leu todos sem perceber nenhum recado para ele. Foi até o quarto, deitou no lado que ela dormia, e cheirando seu travesseiro, ouviu um barulho de papel. Passou a mão embaixo da cabeça e achou um recado de Bela:

“Sei que você é esperto e deve estar pensando que vai morrer! Seu bôbo, era só uma história. Na verdade, quem está doente sou eu, só não pude te contar. Sempre que tentava, você acariciava meus cabelos e eu pensava que não valia a pena, porque minhas dores estavam cada vez piores e minhas chances eram quase nulas. Decidi aproveitar nossos momentos. Me perdoe, não queria que você sofresse todos os dias me vendo minguar. Escolhi como morrer e na hora que julguei certa. Esta manhã, te amei pela última vez, dancei depois de comer tudo que mais gosto e tive uma manhã intensa de felicidade. Não se culpe, fui feliz com você. Te amo! De sua Bela”.

Michele Valverde
Enviado por Michele Valverde em 01/09/2014
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