393-FUGINDO PARA NADAR -Memórias

Lembrando 19 de março de 1948

Dentre as inúmeras, inúteis e idiotas proibições impostas não só a mim, como aos colegas e primos, em nossa meninice, estava a de nadar. Não havia, na remota década de 1940, clubes com piscinas na cidade onde morávamos; e muito menos piscinas particulares, nem mesmo nos palacetes e residências dos ricaços. Embora proibidos de nadar nos córregos da região, era o que mais os garotos faziam aos sábados ou domingos: fugir de casa, enganar os pais, para se refrescarem no poço do Gudim, no Tirabufo, na cachoeira do Pedro II, ou para saltar de cima da ponte do Rio Santana. Todos os locais eram freqüentados por nossa turma, apesar dos afogamentos ocorridos no sumidouro do Tirabufo e de algumas quedas desastradas na cachoeira do Pedro II.

Era corriqueiro e talvez eu não estivesse aqui rememorando tais infrações a não ser por uma fuga que me deixou lembranças indeléveis. Fui um garoto mirrado, sofria de asma, mas nem por isso menos travesso. Gostava de me exibir, de acompanhar os colegas maiores, principalmente quando “fugiam” para nadar.

Estava no segundo ano do curso ginasial. O ginásio era dirigido por irmãos Lassalistas, congregação de educadores que mantinham estabelecimentos em diversas cidades do sul de Minas. Foi no dia de São José de 1948, data onomástica do diretor, Irmão José. Os irmãos não celebravam os aniversários nas datas do nascimento, e sim nos dias dos santos padroeiros. Ao chegar ao ginásio, fomos para a capela assistir missa em agradecimento por termos o Irmão José como diretor e, após, dispensados das aulas.

— Hei! Vamos aproveitar a folga? Vamos nadar no Liso? — Um dos colegas sugeriu.

Logo uma dezena de colegas concordou, eu entre eles. Do portão do ginásio já tomamos a direção do rio Liso, que passava a uns três ou quatro quilômetros da cidade. A manhã estava fresca. Havia chovido à noite e nos dias anteriores, as fortes chuvas que os adultos chamavam de “chuvas que fecham o verão”, e que provocavam as “enchentes das goiabas”. A trilha estava escorregadia, e mais de um resvalou, molhando e sujando o uniforme. Felizmente, não tive esse dissabor.

Era um córrego raso, de uns 10 metros de largura. Dava pé em ambas as margens e apenas no centro era profundo o bastante para se nadar. A água estava fria, o que não diminuiu nem por um instante o nosso prazer de pular na água, espadanar, brincar na areia da margem. Apesar das diferenças de idades e tamanhos, todos ficávamos nus, sem constrangimentos. Eventualmente, os que sabiam nadar davam braçadas no meio do rio. Nós, os que não sabiam nadar, não nos aventurávamos onde a profundidade era acima de nosso tórax ou pescoço. Mas estávamos bem acompanhados, pois conosco estava o Vitor Charlot, o aluno mais alto do ginásio, por isso mesmo apelidado de “Espanador da Lua”. Excelente nadador, ficava de olho em todos nós, como se fosse o responsável pela segurança da turma.

— Cuidado aí, Furmiguinha, não vem pro meio, fica perto da margem. — gritava comigo, que, pelo tamanho e agilidade, tinha o apelido de “Formiguinha Elétrica”.

Naquela manhã, descuidados e felizes por um dia de folga em plena semana, não notamos a passagem das horas, quando alguém lembrou:

— Gente, tá na hora de ir embora.

— Já passa de meio-dia, vamos voltar correndo. Senão...

Vestimos as roupas depressa, os corpos ainda úmidos e calçamos os sapatos e botinas com os pés molhados. Esfregamos os cabelos para trás e, num trote rápido, voltamos, cada qual para sua casa.

Quando cheguei, minha mãe estava aflita. Passava das duas da tarde e ela já havia pedido a papai.

— Pedro, vai ao ginásio ver o que aconteceu com o Tunico.

Mas ele não se afobava. Com a calma, tratara de tranqüilizar mamãe.

— Onde é que você estava? Fiquei preocupada com sua demora. — Mamãe, aliviada com minha chegada, colocou sobre a mesa o prato de comida. — Guardei seu prato, você deve estar com fome.

Papai foi mais incisivo:

— Fala logo, Tunico, Onde é que você andava? Tava na companhia dos moleques?

— Ara, pai...o senhor sabe...— Comecei a gaguejar. Mas já tinha imaginado uma desculpa. — Hoje é dia de São José, o diretor, o Irmão José, faz aniversário hoje e...

— Desembucha logo garoto. — Papai estava impaciente.

— Bem, é que depois da missa teve campeonato de futebol, o irmão Gustavo formou os times, eu fiquei de goleiro...

— Você, goleiro! Não agüenta nem com bolinha de meia. Inventa outra!

— E aí as partidas demoraram. A gente ficou de bobeira, vendo o jogo dos times dos internos... — Insisti na mentira.

Papai não acreditou. Mamãe, que já imaginara mil e um desastres, se dando por satisfeita com minha chegada “são e salvo”, não me aborreceu com mais perguntas. Mas, como era a minha palavra, não havia indícios de que outra coisa pudesse ter acontecido. O assunto ficou aparentemente encerrado.

Digo aparentemente porque nos dias seguintes, papai (não me perguntem como) ficou sabendo da história real. Me chamou na sua oficina de marceneiro, no fundo de casa:

— Tunico, vem cá! — Estava com o semblante fechado e a cara de zangado. — Tou sabendo de tudo.

— Tudo o quê, papai?

— Você fugiu pra nadar no Liso, no dia de São José.

— Papai...é que.. — Descoberto, não tinha argumento.

— Moleque sem-vergonha!. Foge pra nadar e ainda vem com mentiras! — Agora, já gritava, enquanto tirava a correia da cintura. — Vou lhe dar uma sova que jamais esquecerá.

Fiquei apavorado. Nunca tinha visto papai com tanta raiva. Mamãe apareceu no barracão, enxugando as mãos no avental, vinda do tanque de lavar roupa.

— Pedro, que é isto? Que gritaria é esta?

— O folgado do Tunico fugiu pra nadar e ainda por cima mentiu pra nós. Vou lhe dar uma surra. — E enquanto falava, dobrou a cinta, para tornar as lambadas mais eficientes e dolorosas.

O desejo inicial foi fugir. Mas papai, lendo meus pensamento, me agarrou pelo braço direito. Eu tremia que nem vara verde.

— Fica aqui. seu mentiroso. Agüenta o tranco!

— Pára, Pedro. — Mamãe interveio, chegando e me segurando pelo braço esquerdo. — Não bate no menino não.

— É pra ele aprender a não fugir nem mentir.

— Não bate, não! — Mamãe também grita, entre pedindo e ordenando. — Não vou deixar! — Mamãe me puxa, e papai solta o meu braço

— É, deixa ele mentir. Deixa ele fugir pra nadar. Amanhã ou depois, vai mentir de novo e quando vê, vai fugir da cadeia!

Apesar da intervenção de mamãe, eu ainda estava apavorado. Abracei-a pela cintura, sem falar nada, pois tinha perdido a voz. Começava a soluçar.

— Não bate! Não precisa. .

— Então, fica por sua conta. A responsabilidade é sua.

— Não! Vamos lhe dar um bom castigo, que ele vai aprender, sim, a não mentir nunca mais.

Papai recoloca a larga correia nos passadores do cós da calça. Quando termina de apertar a fivela, parece ter recobrado a calma.

— É, tá bom. Mas vou lhe dar dois castigos. Primeiro, por fugir, sair sem avisar. Segundo, pela mentira.

Senti o corpo de mamãe relaxar, Afrouxei o abraço e olhei para papai.

— Não tem mais matinê de cinema nos domingos. Este é o primeiro castigo.

Suspirei, aliviado. Não era tão ruim, assim. E depois de umas semanas, ele vai esquecer.

— E o segundo castigo é este: até o fim do ano, não compra nem lê mais nenhum gibi.

Então, sim, senti o peso da justiça paterna. E caí no choro.

ANTONIO GOBBO –

BELO HORIZONTE, 19 DE MARÇO DE 2006

Conto # 393 DA SÉRIE MILISTÓRIAS =

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Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 31/08/2014
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