"Avôhai" e a promessa cumprida
Um ser humano maravilhoso! Essa frase descreve um grande homem. Um enorme coração, poucas palavras e uma mente brilhante.
José Valverde Filho, no auge de sua juventude, tornou-se autodidata. Morava longe do centro da cidade, então formou uma pequena escola para alfabetizar as crianças da região. Logo que perdeu o pai, casou-se e teve sete filhos.
Fui morar com meus avós com menos de um ano de idade. Foi quando o conheci. Aquele rosto sisudo não se continha em sorrisos para mim. Todos admiravam sua paciência com uma criancinha.
Com dois anos, eu levava café passado na hora para ele, quando amanhecia o dia. Vovó colocava o café numa pequena xícara maior que minha mão e eu sorridente, com as mãozinhas queimando, andava devagarinho derramando café pelo caminho todo até chegar ao quarto em que estava o velho carrancudo lendo o jornal. Logo sorria quando me ouvia: “Bom dia, vovô! Aqui seu café!”
Então, eu me sentava ao seu lado na beiradinha da cama, balançava as perninhas que nem alcançavam o chão, enquanto ele lia em voz alta para vovó e eu as notícias do dia.
Depois de sete anos não morávamos mais juntos, mas eu adorava passear em sua casa. Ele de tudo fazia para me ver sorrir. Íamos pescar no córrego longe de casa. Eu corria na frente gritando: “Anda logo vovô!” Ele, com os olhos brilhando diante da minha ansiedade, dizia: “Não corra menina! O peixe não vai fugir”!
Ele colocava a minhoca no meu anzol porque eu tinha dó de espetar a coitada. Quando fisgava um peixe, ainda que bem pequeno, eu gritava muito de alegria e depois tinha medo de tirar do anzol. Meu “avôhai”, como diz o cantor Zé Ramalho, caía-se em gargalhadas.
Seus cabelos estavam embranquecendo e eu dizia: “Vô, um dia vou cuidar do senhor! O senhor cuida tão bem de mim...” Ele nada respondia.
Ele era muito cuidadoso com a saúde, sempre bonito e bem arrumado. Logo cedinho começava seu ritual de cuidados. Pegava um espelho, desses antigos com moldura laranjada, pendurava em um prego na varanda. Fazia a barba, passava loção perfumada no rosto e sentava-se à mesa para tomar café. E eu ficava em volta olhando cada movimento dele. Já aposentado, dedicava seu tempo aos livros e ao violão, que tocava todos os dias na varanda quando o sol ameaçava se esconder.
Falava sobre qualquer assunto que lhe fosse instigado por algum amigo. Estava sempre buscando informações sobre política, medicina e o que costumava cair em concursos públicos. Eu ficava admirada de vê-lo falando com tamanha propriedade sobre tantos assuntos porque habitualmente ele era muito calado. Certa vez, o ouvi explicando a um amigo sobre os benefícios do alho: “coloque um dente de alho com casca no copo a noite e amasse com água. Beba em jejum no outro dia cedinho. Vai controlar sua pressão arterial!” E eu fiquei por horas pensando onde o amigo dele guardava a tal da “pressão arterial”.
O tempo passou, eu cresci e quando já tinha vinte e quatro anos de idade fui passear em sua casa com meu filho. Minha vó disse que meu vô não estava muito bem. Perguntei a ele, mas me disse que era exagero da minha vó. No amanhecer do dia ele me chamou e disse: “Me leva ao cardiologista, acho que agora preciso!”
Rapidamente conseguimos trazê-lo para Dourados em consulta com a médica que já o acompanhava. Foi internado imediatamente. Teve complicações em seu estado de saúde. Após dez dias ele foi para a UTI por causa de uma pneumonia. Dois dias depois voltou para o quarto. Esse foi o pior dia de nossas vidas juntos. Vovô deitado impotente naquela cama de hospital me olhava com lágrimas nos olhos e pedia: “Aumenta meu oxigênio, não respiro bem...” Olhei para o aparelho e vi que estava no limite.
A enfermeira fez o procedimento adequado. Injetou medicação no soro e restava aguardar a melhora dele. Eu conhecia todos os funcionários do hospital, porque trabalhei por dois anos com eles. Um colega me chamou e disse: “Mi, infelizmente não há mais nada para fazermos. O coração de seu vô está muito fraquinho e irá parar a qualquer momento! Só passa dessa noite por um milagre!”
Voltei ao quarto, sentei-me na beiradinha da cama e balancei as pernas que agora já tocavam o chão. Segurando as lágrimas, para não assustá-lo, disse: “Vozinho, amo muito o senhor! Sou muito feliz por ser meu ‘Avôhai’.” E ele respondeu: “Você está cumprindo aquela promessa de criança, não é mesmo?”. Beijei sua mão e saí do quarto. Liguei para uma tia me substituir no hospital, não poderia ver meu avô partir.
Amanheceu e voltei ao hospital. Quando entrei no quarto, vi meu vô tão lindo, com uma expressão alegre e já nem estava mais com o aparelho de oxigênio.
Dois dias depois ele recebeu alta. Ao sair do quarto, todos os funcionários do hospital estavam em pé no corredor esperando ele passar. Só ouvíamos aplausos para o velho: “Esse parece uma rocha!” disse um enfermeiro. Foi emocionante.
Um mês depois, ele abraçou-se com a morte deixando além da saudade um conselho que eu ouvia desde criança: “Tudo podem lhe tirar, mas o seu conhecimento nunca irão arrancar!”