386-CARTEIRINHA DE VEREADOR-Politica, Policia, Corrupção
Saindo do Beco do Cambão, o motoqueiro irrompe pela Praça Principal em louca disparada, a luz do farol iluminando a praça no torpor da noite quente. . O troar da motoca mais parece uma metralhadora. Dá uma guinada para a esquerda, outra para a direita, não conseguindo evitar o raspão em um carro estacionado. Mais uma virada brusca, sem diminuir a velocidade, e o motoqueiro maluco avança sobre um grupo de talvez vinte pessoas, as quais saboreavam churrasquinhos e cervejas geladas, ocupando metade da rua, defronte o “Churrasquinho Amigo” do Luizinho. Atropela dois e derruba uma mesa, sem se deter.
— Filho da puta!
— Desgraçado! Maluco!
— Pára aí, covarde!
Os gritos ecoam na noite, antes mesmo de os feridos serem atendidos. O som da motoca se perde, ao longo da rua mal iluminada.
— É o Nequinha Micão. Tá drogado.
— Chama a polícia.
— Acode aqui, o Dirceu tá desmaiado.
Quando a viatura policial chegou, os arranhões e esfolados já tinham sido tratados com álcool e lenços, em curativos improvisados. Apenas o Dirceu estava no chão, ainda sob forte comoção.
— Para onde ele foi? — Perguntou o Cabo Rogério.
— Subiu a rua, foi pro Alto do Hospital.
— Coloquem o ferido no banco de trás, vamos levá-lo ao hospital.
A sirene ligada, os pneus cantando na arrancada brusca, lá foi o carro policial em disparada, levando um ferido e, ao mesmo tempo, procurando o motoqueiro maluco.
— Tou doido pra pôr a mão no Nequinha. O filho da mãe já aprontou demais. — Falou, entre os dentes, o Cabo Rogério.
— Vamos dar pra ele um corretivo dos bãos. — Completou o soldado Militão.
Ao se aproximarem da Praça do Hospital Municipal, os dois se deparam com outro grupo de pessoas, desta vez reunidas em torno de algo que não conseguem ver de imediato.
— O demo tá solto esta noite, cabo.
— Olha, tem enfermeiros no meio do pessoal.
Chegam e vão abrindo caminho com a sirene e faróis. O grupo se abre ante a chegada da autoridade policial.
No chão, estendido na calçada, a cabeça no meio fio, está um corpo.. A moto está a alguns metros, a roda da frente arrebentada.
— É o Micão!
Os dois descem da viatura, cuja sirene continua ligada, A madrugada se enche de sons, não só da sirene, como também das vozes dos que cercam o motoqueiro, às quais se juntam as ordens dos policiais.
— Mas...como foi?
— Ele não conseguiu fazer a curva, a moto bateu no poste, e tá aí desmaiado.
Dois enfermeiros chegam afobados, carregando uma maca.
— Arreda, gente. Vamos pôr ele aí na maca e levar pra dentro.
— Negativo! — Cabo Rogério assume logo o controle da situação. — Vocês vão levar primeiro o Dirceu, que foi atropelado por esse bandidinho aqui. Tá no banco de trás. Ele, sim, precisa de socorro urgente. Esse porcaria aí pode esperar.
— Mas, cabo, o motoqueiro tá sangrando muito. — Um dos enfermeiros tenta dialogar.
— Deixa sangrar. Vão atender o homem que tá no carro.
A sirene e o vozerio da discussão em plena madrugada acordou todos os moradores das casas ao redor da praça do hospital. Da sacada de um sobradinho chegou uma voz enérgica:
— Mas que zorra é essa aí? Não se pode mais dormir sossegado?
— Cala a boca, cidadão. Aqui é uma emergência policial.
O homem na sacada, careca e muito gordo, trajando apenas um short vermelho, a barriga proeminente, saltando por cima do cordel da cintura, não gostou da ordem do policial. Desceu assim como estava e dirigiu-se para o meio do grupo.
— Que merda é essa aí? E quem foi que me mandou calar a boca?
— Cala a boca, cidadão. Ou lhe prendo por desacato à autoridade.
— Você sabe com quem está falando? Eu sou...
Antes de terminar a frase, o Cabo sobrepôs uma ordem, aos gritos:
— Soldado Militão, prende esse homem por desacato.
Militão, numa agilidade felina, põe a manopla direita sobre a boca do gordo de short vermelho, enquanto com a esquerda aplica-lhe uma chave no braço, imobilizando e calando o querelante. Com perícia de longa prática, joga-o dentro do carro. Os gritos ficam abafados pela sirene.
— Toca pra delegacia.
Sabendo da inutilidade de suas alegações, e receando ser mais agredido ainda, o homem de short vermelho permanece mudo. Na delegacia eles vão saber com quem estão falando...
Ao chegarem, o delegado, acordado na madrugada por avisos telefônicos, já estava no aguardo da chegada dos seus auxiliares..
— Doutor, temos diversas ocorrências pra fazer.
— Já sei, já sei. — O homem era bem informado e já estava a par de toda a situação. — Nequinha Micão atropelou quatro pessoas na praça. E acabou morrendo à porta do hospital.
— Morreu? — Fingindo surpresa, Cabo Rogério olha significativamente para Militão, que abre a porta do carro e puxa o gordo de short.
— E prendemos esse cidadão por desacato à autoridade.
Ao ver de quem se trata, mais assustado do que surpreso, o delegado exclama:
— Mas... é o vereador Conegundes!
— Vereador? Mas...mas... — Cabo Rogério se engasga. —
— Sim, seu soldadinho de bosta! Sou o vereador Conegundes, sim. Quis lhe avisar...
— Mas, doutor! — O servilismo aflorou e o cabo falava como se estivesse se arrastando pelo chão. — Mas doutor...O senhor devia ter mostrado logo sua carteirinha de vereador!
Antônio Gobbo –
Belo Horizonte, 13 de fevereiro de 2005 –
Conto # 386da série MILISTÓRIAS