385-A OFERENDA-Sacrificio humano no século. XXI

— Não precisa falar nada. Já sei o que você quer. É coisa muito grande. Vai te custar muito caro.

No ambiente parcamente iluminado, tal qual caverna misteriosa, o aspecto de Nhá Vitorina se impunha por sua aparência de terror. O rosto vincado por milhares de rugas, os lábios grossos e salientes, nariz imenso e achatado, a testa larga, brilhante de suor ou oleosidade natural. A cabeça protegida por um pano mal amarrado à guisa de turbante, aumentando a imponência da figura bizarra.

— Por favor, faça com que ele saia da minha vida. Faço tudo o que a senhora mandar. — A consulente, uma mulher branca, de longos cabelos pretos, talvez com trinta anos, vestida modestamente, mas com boas roupas. — Me ajude!

— Sim. Mas preste atenção. O preço do serviço que você quer é a criança que você vai ter.

— Mas eu não estou grávida!

— Está sim. Ainda não sabe. Tá emprenhada desse homem que você quer se livrar.

— Ai, meu Deus! Como é que foi acontecer? — Vandenusa torce as mãos, num desespero incontido. Lágrimas escorrem pelo rosto, borrando a maquiagem leve. — Não posso...nem quero...Num agüento...

— Agüenta sim. Tudo está tramado para você ter essa criança e oferecê-la para ficar livre do pai dela e voltar a ter seu marido de volta.

A consulente parece desfalecer. Nhá Vitorina lhe oferece um copo com água e mais alguma coisa.

— Bebe. Isto vai lhe acalmar. E escute.

Vandenusa não falou tudo para Nhá Vitorina. Das surras tremendas que Carlão lhe aplicava, do verdadeiro inferno em que se tornara sua vida, nos últimos meses. O homem, operário da refinaria de petróleo, chega em casa cansado e de mau humor. O que não é, absolutamente, justificativa para a violência que aplicava na companheira. Ela, desencantada com o companheiro, não quer mais saber dele para nada. A filha do casamento com Clodoaldo, menina de 8 anos, vivia com a avó, mãe de Vandenusa, condição imposta por Carlão quando passaram a viver juntos.

Onde estava com a cabeça quando troquei Clodoaldo por este desgraçado? — Esta era a pergunta que não se calava em sua mente. Já tinha pensado em abandoná-lo, mas ele percebera sua intenção.

— Se você pensa em me abandonar, saiba que vou te caçar e te matar, nem que seja nos quintos do inferno! — Ele ameaçou certa noite , entre tapas e safanões, e ela tinha certeza de que o faria.

A violência era o estimulante da libido de Carlão. Após cada sessão de pancadaria, seguia-se a posse, violenta, do corpo de Vandenusa, que se enojava cada vez mais do homem que a possuía.

Abandonar, não tinha como. Fugir pra onde? Além disso, tinha a filha, Celeste, e a mãe, que dependiam dela para viver. Trabalhava, tinha bom emprego como vendedora em uma grande loja do Shopping Alfamil e não iria, não queria perder tudo. Nem lhe passava pela cabeça procurar a Delegacia de Mulheres, tamanho era o terror que lhe infundia Carlão, com suas ameaças.

Na semana anterior, colocara uma faca escondida sob o travesseiro, com a intenção de liquidar com Carlão. Mas quem diz que teve coragem para tanto? No dia seguinte, entretanto, conversando com uma colega, sem entrar em detalhes, obteve uma informação que poderia ajudá-la.

— Procure Nhá Vitorina. Ela é uma índia velha que, com certeza, vai te ajudar.

Vandenusa toma a água amarga do copo que Nhá Vitorina olhe oferece. Acalma-se. Tem alguns momentos de consciência clara do que está fazendo. Olha ao redor. Agora que sua vista já se acostumou à penumbra, observa detalhes do ambiente. Incensos e velas saturam o ar de odores estranhos, fortes, inebriantes. Pelas paredes, quadros de santos, de figuras que ela desconhece. Está sentada no chão, sobre almofadas, numa posição que lhe sugere sono, descanso, entrega. A mulher à sua frente tem olhos que parecem atraí-la irresistivelmente.

— Não. Não quero ter mais filho nenhum. Já nem tenho idade para isso.

— Vai ter, sim. E será uma menina. E você vai oferecer essa criança à Mãe-d´Água.

Não pode ser. Não estou vivendo isso.Deve ser um pesadelo. — Seu pensamento é interrompido pela voz, cada vez mais cavernosa e funesta de Nhá Vitorina.

— Você vai ter ajuda, não se preocupe. Você vai voltar aqui todos os meses, e em cada visita vou lhe orientando. Por agora, pode ir.

A gravidez correu aos trancos e barrancos. Quando ficou sabendo que estava grávida, pelos resultados de exames a que se submeteu, Carlão descobriu. O que foi motivo para outra surra.

— Sua cadela! Quem é que quer filho nesta casa? Trate de tirar isso aí, ouviu? — E tome tapas e murros. Na tentativa de frustrar a gravidez, dá murros na barriga de Vandenusa.

— Pelo amor de Deus! Esta criança tem de nascer! Não me bata na barriga! — Ela implorava, entre lágrimas e sangue de suas feridas.

Conforme o determinado pela misteriosa mulher, Vandenusa visitava-a todos os meses, numa obediência hipnótica. E a cada sessão, novas instruções iam sendo acrescentadas, sempre aos poucos, de forma que ela jamais sabia o destino a ser dado à criança que trazia consigo. A oferenda à Mãe-d´Água lhe soava como algo sublime e simbólico e ela foi, aos poucos, aceitando a idéia.

Talvez devido às surras freqüentes, a criança nasceu prematuramente. Deus à luz na Maternidade Santa Edwiges e rejubilou-se por saber que a criança era perfeita, embora tivesse de permanecer na UTI infantil por algum tempo. Ao voltar ao lar, depois da alta na maternidade, encontrou-se só. Carlão não mais estava em casa e tinha levado todos os seus pertences.

Antes só do que mal acompanhada, pensou. Ficou alegre, pois viu neste abandono a realização do prometido pela Nhá Vitorina. Voltou ao lúgubre antro da bruxa, para lhe dar notícias e receber mais instruções. Talvez seja a última visita que lhe faço.

Foi com voz alegre que falou com a conselheira, a qual lhe cortou a palavra no início.

— Já sei de tudo. É uma menina, que vai ficar ainda um mês na maternidade. Você vai batiza-la de Iara. Sei que seu companheiro já foi embora. Viu como as coisas acontecem? Mãe-d´Água fez a parte dela, antes mesmo de receber a oferenda que você vai lhe oferecer. Gora, você é devedora da Deusa.

— E como vai ser essa oferenda? A senhora já me disse tudo, menos como deverei fazer a oferenda.

— Daqui a um mês. Na véspera do dia em que você for buscar a menina na maternidade. Será a última vez em que você virá aqui. Depois desta vez, você vai me esquecer, esquecer que esteve aqui e de tudo o que eu lhe disse.

Aquelas palavras entraram em sua mente como uma ordem definitiva e total.

Quatro semanas após ter dado à luz, Vandenusa foi avisada, na visita diária que fazia à filha, de que poderia levar a menininha no dia seguinte. Naquela mesma tarde, foi visitar a velha conselheira, para as instruções finais.

Vamos ver como será essa oferenda. Tomara que eu não tenha que trazer minha filhinha aqui, neste lugar esquisito. Tomara que eu possa fazer em casa, ou num lugar longe daqui...sei lá. — Estava até animada com o desenrolar da história, pois Carlão sumira de vez e encontrara-se, ao acaso e por alguns momentos apenas, com Clodoaldo, que não se mostrara magoado com ela. Quem sabe se até reato com Clodô?

A última visita a Nhá Vitorina foi peculiar. Começou com um ritual, no qual foram acesas mais velas, incenso e ervas secas queimados em um vaso com brasas, e oferecido a Vandenusa um copo com beberagem grossa, tal qual uma vitamina de frutas. Era doce, de gosto agradável, mas deixou, ao final, um travo ao mesmo tempo acre e amargo na boca.

Vandenusa sentiu-se tranqüila, calma. Sentada sobre almofadas, ouvia a voz da velha como num estado de semi-inconsciência. E por mais absurdas e disparatadas que fossem as ordens emanadas da boca sem dentes de Nhá Vitorina, ela ouviu e aceitou como coisa natural a ser feita.

— E você vai me esquecer, esquecer de que esteve aqui.Nunca mais se lembrará disto. — Foram as palavras finais da velha.

Acordou no dia seguinte ainda sob os efeitos da bebida e das palavras da velha. Num estado catatônico, dirigiu-se à Maternidade, onde preencheu e assinou, com certa dificuldade, os papéis necessários à saída da filhinha. Esta, vestida com um macacãozinho cor-de-rosa, lacinho de fita nos poucos cabelos, envolta numa manta, sorria para a enfermeira e em seguida para a mãe. Estava saudável, após o período na UTI infantil.

Sem se despedir do pessoal que atendia naquele momento, saiu e tomou um ônibus. O destino não era sua casa, mas um local à margem da Lagoa da Pampulha. Dirigia-se ao local por determinação de Nhá Vitorina.

— Ali, perto do Museu de Arte, você vai encontrar ajuda. Vai ver uma pessoa te esperando.

O local era de pouco movimento de carros e absolutamente sem pessoas. Àquela hora da tarde, estava deserto. À exceção de uma mulher vestida de branco, com um turbante, que se aproximou de Vandenusa.

— Vamos logo fazer o serviço. — Determinada, pegou um saco plástico preto, que trazia consigo, ao qual estava amarrado um pedaço de madeira, uma tábua curta. A ordem da desconhecida foi imediatamente obedecida por Vandenusa, que, em movimentos catatônicos, colocou a criança no saco plástico. Em seguida a desconhecida fechou a boca do saco, amarrando-o e colocou-o na água.

— A tábua vai manter a oferenda boiando por algum tempo. — explicou a estranha mulher de branco. — É necessário que a oferenda não afunde logo, pois, se afundar depressa, a Mãe-d´Água não aceita.

Os olhos gazeados de Vandenusa acompanharam o estranho objeto flutuante afastando-se lentamente na direção do centro da lagoa.

Subitamente, o feitiço a abandonou. Acordou do torpor em que estivera mergulhada. Os olhos se dilataram de terror ao perceber que a filhinha iria morrer afogada. Olhou para onde estaria a mulher vestida de branco e não viu ninguém.

— Minha filhinha! — O grito de desespero foi abafado pelo espadanar das águas, pois ela corria para dentro da lagoa, na tentativa de alcançar a oferenda.

— Minha filhinha! – Gritou mais uma vez, agora já com a água entrando-lhe pela boca. Apenas alguns metros a separavam do saco preto quando, perdendo o pé e não sabendo nadar, afundou-se. Ainda teve uma última luz de consciência, quando soube que acontecera uma troca de oferenda. Fora ela a escolhida pela Mãe-d’Água.

ANTÔNIO GOBBO –

Belo Horizonte, 3 de fevereiro de 2006

Conto # 385 da série MILISTÓRIAS =

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 28/08/2014
Reeditado em 28/08/2014
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