383-A TAÇA DO MUNDO É NOSSA!- Roubo da Taça Jules Rimet
O bar era um antro de reunião de cachaceiros, malandros, putas e afins. Não tinha nome, mas todos o conheciam como “birosca do Zé Manco” e situava-se numa pequena favela chamada Santo Cristo, no Rio de Janeiro. Na noite quente, um dos bebedores se jactava de suas proezas.
— Então, roubamos ela e levamos pra ser...
— Seu malandro! — Interrompeu um dos ouvintes, — Então foi você quem roubou a taça?
— Sim, fui eu. Cês não viram nos jornais?
— Desgraçado! — Gritou um dos freqüentadores do bar, levantando-se de sua mesa. Sem dar tempo para que alguém notasse sua intenção, chegou perto do barbudo bêbado que bazofiava sobre seu intrépido feito, e lascou-lhe um murro nas costas. O barbudo arriou sobre a mesa, desequilibrando o pequeno móvel e, caindo, arrastou consigo garrafas e copos de bebidas.
Não satisfeito com o efeito do soco, o agressor passou a chutar o homem no chão, num acesso de violência contagiante. Diversos outros homens, todos evidentemente bêbados, passaram a agredir o barbudo, até que seu corpo frouxo não mais reagiu aos golpes. Um deles gritou:
— Pára, gente, o filho da puta tá morto!
O alvoroço cessou por um instante, ao qual se seguiu uma debandada geral da birosca, onde só permaneceu o esquálido proprietário. Saindo de trás do balcão, mancando, chegou até o corpo estendido no chão, em grotesca e mortal posição. Agachando-se lentamente, com medo de confirmar o grito de alguns minutos atrás, apalpou o corpo amassado e manchado de sangue que ainda escorria de sua boca, cabeça, orelhas e mãos.
Puta que pariu! Mataram o Chico Barbudo!
A morte de Chico Barbudo nunca foi explicada. Há outras versões, dadas à polícia. Mas o fato é que ele não tivera oportunidade nem tempo de gozar as regalias que lhe foram prometidas por Sergio Peralta, cerca de seis anos antes, ali mesmo naquele barzinho do antigo bairro de Santo Cristo, no Rio.
— Vai ser moleza. Sei onde a Taça tá escondida. Tenho aqui na cuca tudo planejado.
— Mas ela num tá vigiada? — Perguntou Luiz Bigode.
— Claro, mas conheço o esquema. Sei a hora melhor que o vigia tá cansado Vai ser fácil.
Sergio Peralta tenta convencer os dois amigos. Francisco Rocha Rivera, conhecido por Chico Barbudo, homem de poucas letras, espanhol foragido e simplório, já tinha concordado na parceria para o roubo. Por isso, estava só ouvindo e bebericando cachaça.
— E quem vai comprar “ela”? — Luiz Bigode queria saber dos detalhes.
— Tenho um comprador garantido. Ele compra tudo o que levo pra ele. Tem uma loja na Rua do Ouvidor, bem no centro.
Após algum tempo de conversa, e mais uma garrafa de cachaça repartida entre os três, o “serviço” está combinado.
Era verão de 1983, um verão particularmente quente na Cidade Maravilhosa. Na noite marcada para o roubo, 19 de dezembro, os termômetros marcavam 38 graus. Peralta, suando em bicas, tanto pelo calor como pela expectativa, não estava satisfeito com seus parceiros. Luiz Bigode parecia estar dopado, os olhos saltando nas órbitas, as mãos tremendo.
— Andou cheirando, Bigode? Tá tremendo que nem...
— Nada não, tou firme e pronto.
Olhou para Chico Barbudo e nem precisou perguntar nada. Pelo cheiro, percebeu que o espanhol bebera além do normal.
— Vamos embora.
Entraram os três no velho fusquinha de Peralta. Eram duas da madrugada. O motor do carro fazia um barulho danado, ressoando pelos altos edifícios da Candelária e adjacências.
— Vamos parar uns quarteirões além do edifício da CBF, pra não dar na vista. — Sérgio avisou aos comparsas.
Dirigindo com cuidado, para não exigir muito do velho fusca, encostou-o num beco escuro, de nenhum trânsito naquela hora da noite.
— Vamo gente. Devagar. Sem barulho. Faz de conta que estamos indo pra casa.
Resguardados pelas sombras dos velhos edifícios, caminharam até a CBF, em cujo interior estava exposta a Taça Jules Rimet, conquistada definitivamente pela seleção brasileira de futebol, na Copa do Mundo de 1970.
— Eu vou na frente e rendo o guarda. Chamo você com um pio de coruja. Entendido?
Sem esperar resposta, Peralta, grudado aos muros, uma sombra entre as sombras, chegou até onde um único guarda vigiava a entrada do edifício. O assaltante já havia, em noites anteriores, verificado os hábitos do vigia. Cansado pela longa e solitária vigília, ele costumava sair da guarita por volta das três da madrugada, dava alguns passos, acendia um cigarro e ficava distraído por alguns momentos.
Peralta saltou como uma cascavel, num bote certeiro, atingindo o guarda por três, com uma cacetada que o prostrou sem um gemido. Um risco rubro da ponta do cigarro traçou um arco irregular, apagando-se ao chegar ao chão.
O bandido, magro, mas forte, arrastou o guarda para o canto da calçada, onde as sombras eram mais densas. Tirou rapidamente o jaleco, que vestiu (verificando que o molho de chaves estava num dos bolsos), e colocou na cabeça o quepe do desmaiado. Amarrou as mãos e pés, atochou a boca com um lenço imundo e certificou-se de que estava mesmo isolado, dando-lhe um forte pontapé, que não causou reação.
Em seguida, deu um pio, imitando coruja, com as mãos colocadas em concha ao redor da boca, a fim de direcionar o som até onde se encontravam os comparsas. Luiz Bigode atendeu presto, mas Chico Barbudo olhou com desconfiança para o vulto de quepe e jaleco, não fosse o próprio guarda armando alguma...
— Ocê fica aqui, Chico. Esconde aí na sombra, perto do guarda. Fica de olho nele e no movimento da rua. Se ele acordar, dá-lhe um pontapé e faz ele ficar calado. Se vier algum carro, dá um jeito de avisar a gente.
Acenando para Bigode, agachado e aproveitando as sombras, Peralta tomou a dianteira. A porta foi aberta facilmente. Subiram os lances de uma escada que conduzia ao pavimento onde estava a Taça.
Lá estava ela, toda de ouro, sobre um pedestal, brilhando ainda que parcamente sob a luz dos reflexos vários que entravam pelas janelas, abrigada simplesmente por uma redoma de vidro. Dos dois lados do salão, em vitrinas imensas, centenas de taças e troféus estavam dispostos, todos igualmente desprovidos de proteção.
Peralta olhou por todos os lados, para confirmar o que já sabia: nenhum sistema de alarme, nada de sofisticado ou escondido. Apenas a redoma de vidro, que, naturalmente, afixada no pedestal, não constituía óbice para assaltantes, até mesmo o bisonho trio que se dispunha a roubá-la.
Sem dizer “um, dois, três”, Peralta se adianta, e com o mesmo pedaço de ferro usado ara golpear o vigia, despedaçou a redoma.
— Shiiiii... — instintivamente sibilou Luiz Bigode.
— Tá feito. Pronto! — Agarrando a taça com a mão esquerda, Peralta a ergue por alguns minutos e diz, quase cantando: A Taça do Mundo é nossa!
Os dois descem correndo a escada. Agora, sabem que a qualquer momento alguém pode aparecer, deve ter mais algum vigia nas imediações. Correndo passam por Luiz Bigode.
— Corre, Bigode! Tá tudo certo!
Chegam sem percalços, mas esbaforidos, ao local onde estava o fusca. Entram e se dirigem ao endereço do comerciante de ouro.
— A gente já vai entregar direto pro Juan? — Chico Bigode fica fascinado com a beleza da taça e acaricia como se fosse uma mulher amada. — A gente podia mostrar pros amigos...
— Tá doido, Barbudo? Isso aí é uma batata quente. Quanto mais depressa a gente se livrar dela, melhor.
— Mas, nessa hora da madrugada?
— O Juan tá esperando a gente.
Juan Carlos Hernandes, comerciante de metais preciosos, tinha sua loja na Rua do Ouvidor apenas como fachada para seu negócio escuso: receptador de jóias roubadas. Havia combinado com Luiz Bigode. Sabia que era algo muito valioso e que deveria ser entregue naquela madrugada. Aguardava a chegada do seu habitual fornecedor de material roubado. Abriu a pequena porta lateral de sua loja tão logo ouviu o ronco familiar do velho fusca.
— Shiii... Entrem, rápido! — A porta ficou aberta o tempo suficiente pra que os três assaltantes entrassem.
Acendeu a luz do pequeno quarto de fundir metais. Ao virar-se, Peralta lhe mostrou a taça.
— Puta que pariu! Que é isso? A Taça do Mundo? — Assustado, o comerciante recua.
— É o roubo do século! — vangloriou-se Luiz Peralta.
— Que merda! Não tenho como fundir essa peça!
— Como, não? Não pode derreter por quê?
— O máximo que meu fundidor aceita é 250 gramas de ouro por vez. Essa taça tem quase dois quilos de ouro!
— Um quilo e oitocentas. – Luiz Sabia de tudo sobre a Taça Jules Rimet. — Ocê vai ter de cortá-la em pedaços.
E assim foi feito. Para ser fundida, a taça foi cortada em pequenos pedaços e desta forma desapareceu a maior glória do futebol brasileiro, conquistada através de centenas de jogos da seleção e três campeonatos mundiais, definitivamente incorporada ao patrimônio de troféus da Confederação Brasileira de Futebol em 1970.
A prisão dos autores do roubo foi coisa de rotina para a polícia carioca. A imprensa noticiou com detalhes como o grupo foi condenado à prisão em 1988, cinco anos após o assalto. Luiz Peralta, o mentor do roubo, chefe da pequena gang, pegou cinco anos, Bigode e Barbudo, seis anos. Hernandes, o receptador, ganhou três anos.
Como sói acontecer com todos os condenados no Brasil, evadiram-se, cada qual ao seu tempo, e foram recapturados.
Chico Barbudo, o mais bronco dos três, conseguiu fugir da prisão pela segunda vez. Mas não teve tempo de gozar da liberdade. Sem dinheiro nem lugar para dormir, era um trapo humano, tomando as doses de cachaça que os antigos conhecidos lhe pagavam.
Naquele princípio de noite, quando falou que havia participado do roubo da Taça do Mundo, despertou de modo inexplicável a ira de um dos presentes no bar e foi assassinado no mesmo ambiente em que tudo começara, num bar freqüentado por marginais, em Santo Cristo.
ANTÔNIO GOBBO –
S.Sebastião do Paraíso, 21/01/2006
Conto # 383 da Série Milistórias