Sob o luar
Cinquenta metros. Rua escura. A arma, ainda carregada, era a prova da discussão que acabara de ouvir. Caminhou até o portão. Mais uma vez, os vizinhos faziam escândalo na rua. Entre gritos de "eu vou embora", "eu quero que você morra" e um solitário "eu te amo", saído da boca de uma pequena criança, os dois fizeram as pazes e voltaram para dentro da casa.
Atrás do muro, ele acabara de acompanhar a grotesca encenação teatral, que já fora apresentada outras tantas vezes. O revólver, agora perdido em sua calçada, era personagem secundário, mas imprescindível. Dessa vez, ele fora esquecido sobre as pedras e sob a lua.
Ao escutar o bater da porta ao lado, ele abriu o portão. Olhou ao redor e não percebeu movimentos na rua. Vivia sozinho em um bairro isolado desde que saíra de casa, há dois anos. Pensou que, dessa maneira, poderia abrir mão de conflitos que não tivera a capacidade de solucionar. Enganou-se. Depois de algumas tentativas para retomar a antiga vida, viu-se largado. "Não adianta. Você perdeu a sua chance e o seu tempo. Não ha mais lugar para você aqui." Foi a última frase que ouviu, lançada aos berros de uma janela.
Desde então, dedicou-se ao trabalho e a sua nova casa, evitando pensar que poderia ser diferente. Foi promovido, considerado o melhor gerente dos últimos anos e elogiado, inúmeras vezes, por seus superiores. Todos o olhavam com admiração. Ninguém sabia que, por dentro, era consumido diariamente por um crescente incômodo.
Aproximou-se da arma e a olhou. A única vez que estivera perto de algo semelhante foi na fazenda de seu avô, que costumava caçar animais. Ele tinha 10 anos. Pegou o revólver. Criança. Adolescente. Amigos. Brigas. A primeira namorada. O primeiro porre. A melhor transa. Casamento. Amigos. Risadas. Transformações. Mudanças. Desfechos. Tempo escorrendo pelos seus dedos. O cano estava levemente arranhado. Não sentia mais o peso em suas mãos.
"Pai, perdoa-me. Eu sei o que faço."