371-FEBRE TROPICAL-Jovem americana desaparece noBrasil
— A mocinha teve um surto de febre tropical. — Burt não titubeia na afirmação, colocando o jornal sobre a mesa.
— Febre tropical? Mas que tipo de febre tropical? — Indaga Raul, puxando o jornal e lendo rapidamente a manchete da reportagem.
— É só febre tropical. — Burt explica com ares de mestre no assunto. — Causada pela luz, pelo calor, pela exuberância dos trópicos. Não é uma febre patológica, é emocional. A pessoa fica hiper-sensibilizada pela claridade, pelas cores e entra em delírio. Eu sei porque já tive a mesma experiência quando vim ao Brasil pela primeira vez.
Enquanto o americano fala, Raul lê rapidamente a notícia do encontro de Mary Kenny, jovem norte-americana que esteve desaparecida por cinco dias. O caso tinha sido divulgado pela TV, pelos jornais e pela Internet.
A jovem, de dezessete anos, estava no Brasil participando de programa de intercâmbio cultural, patrocinado por entidade internacional de serviços comunitários. Mocinha tipicamente americana: porte médio, magra, loira e de pele muito clara. Natural de Montana, gosta de caminhadas, de passeios de bicicleta, atividades ao ar livre, que fazia sempre que podia, na América.
Deveria permanecer no país durante um ano, estudando. Residia temporariamente com uma família mineira, em Salto do Paramirim. Dr. Jorge Martins e dona Miriam eram seus “pais adotivos” durante sua permanência no Brasil.
Pertencente à comunidade mórmom, Mary Kenny foi levada por Dr. Jorge, no início do estágio, até a cidade de Patos de Minas, para freqüentar o culto de sua religião. A distância entre as duas cidades era pequena, cerca de cinqüenta quilômetros e havia ônibus freqüentes. Daí, a partir da quarta ou quinta semana, passou a viajar sozinha, indo e vindo de ônibus.
Quatro meses já haviam decorrido desde a chega da loirinha ao Brasil. Desembaraçada, desenvolta, aprendia rapidamente a se comunicar no novo idioma. Então, foi atacada pela febre, conforme a teoria de Burt Kramer.
— Ela deve estar na região, fascinada pelo mundo maravilhoso que é o seu país, principalmente nesta época de primavera. — Explicava ao amigo Raul. — Não vai sumir, não.
Mas Mary Kenny desaparecera de verdade. Os pais adotivos ficaram preocupados quando chegou o último ônibus vindo de Patos na noite de domingo e a garota não viera. Ainda naquela noite, Dr. Jorge telefona para diversos amigos em Patos, ao mesmo tempo em que se comunica com a polícia de Salto.
Surgiu uma pista do sumiço da mocinha que, tendo deixado o templo mórmom após o culto, dirigiu-se à saída da cidade na direção de Unaí, sentido completamente oposto a Salto. Foi a última vez em que a viram nas imediações de Salto.
A tarde do domingo era longa e o horário de verão prolongava ainda mais o dia. Às cinco e meia o sol ainda estava alto e o movimento das ruas era intenso. À saída da igreja, um pensamento maroto atravessou a mente de Mary.
Well....what enchanted evening. I think I’ll go walk for a while. Perhaps till the next town.
Tendo caminhado alguns quilômetros, fez sinal para um ônibus que se aproximava, sem se preocupar com o nome da cidade à qual o veículo se dirigia. Ficou surpresa ao chegar ao destino, ainda iluminada pelas luzes quentes do entardecer. Uma cidade diferente, antiga, com ruas estreitas. Ainda mergulhada no espírito de aventura, obteve carona com um camioneiro, que se destinava a Brasília, a capital do país.
— Você está extraviada por estas bandas? — Perguntou o motorista, puxando conversa.
— Sou norte-americana e estou viajando pelo país. — Ela falou, metade verdade e metade mentira.
O camioneiro aceitou a explicação e não fez mais perguntas. Já era noite quando chegaram.
— Você vai ficar onde? — O homem pergunta.
— Não tenho onde ficar. — Ela responde, ingenuamente.
— Então, vou deixá-la perto de um albergue para turistas assim como você. — Queria dizer “com pouco dinheiro”, mas calou-se a tempo.
— OK.
No dia seguinte, Mary acorda e se levanta junto com os demais freqüentadores do albergue. Há um lanche frugal para todos. À saída, um rapaz lhe pergunta:
— Vai ficar aqui em Brasília? Ou segue viagem pra algum lugar?
Sem saber de seu próprio destino, Mary responde:
— Dont-nou.
O rapaz finge que não entendeu e se afasta.
Da porta do albergue, Mary observa a movimentação dos ônibus. Está defronte a estação rodoviária. Os nomes das cidade de destino a fascinam. Ainda está imersa num sonho, não pensa nas conseqüências do que está fazendo, nem se preocupa em avisar Dr. Jorge ou dona Miriam. Aliás, nem se lembra deles.
Examina a bolsa. Verifica que tem pouco mais de duzentos reais. Decide-se por continuar a viagem. Entra na rodoviária, caminha defronte os guichês e escolhe aleatoriamente um.
— Uma passagem para Salvador. —
E eis a garota de novo na estrada, engajada numa vigem de muitas horas e extensa quilometragem. O dia se esvaiu, veio a noite. Dormiu tranqüila e chegou à rodoviária da capital baiana à uma hora da tarde da terça-feira. Ainda atacada da “febre”, segundo a teoria de Burt, tomou um ônibus para a praia. Qualquer praia lhe agradaria, queria apenas se deitar na areia, descansar, simplesmente ficar, sem nada pensar.
Foi parar na praia de Pituba. Não tinha roupa de banho nem cogitou de comprar. Mesmo porque o dinheiro só daria para a próxima refeição. Deitou-se na areia como estava e, ao som das ondas, entrou numa modorra. Havia pouca gente na praia e sua figura chamou a atenção dos pivetes. Dois garotos passaram por ela, correndo, sem abordá-la. Assustada, sentou-se na areia. Arrumava os cabelos que refulgiam à luz do sol, quando um assaltante tentou tirar-lhe a bolsa. Ela resiste e entra em luta com o garotão. Um rapaz que tudo observava de sua barraca de peixe-frito correu em seu auxílio, espantando o ladrão.
— Cuidado , menina, isto aqui tá um perigo. — Era um estudante que fazia bico como vendedor na barraca da praia.
Pela primeira vez, Mary Kenny se dá conta de sua situação. Fica agitada e não sabe explicar bem como fora parar ali.
— Ela estava confusa e não dizia nada com nada. — explica Márcio, o rapaz que a salvara do bandido. — Resolvi levá-la para a casa de um amigo, no Bairro das Pedrinhas. Não levei para minha própria casa, porque lá não teria lugar para ela ficar.
Desesperado, Dr. Jorge se comunica com os pais de Mary, nos Estados Unidos. Policiais de Minas e Brasília investigam o caso. O FBI também é acionado, pois há suspeitas de seqüestro. Os pais de Mary viajam para Brasília, onde chegam na quinta-feira. Ao desembarcarem no aeroporto, um emissário da embaixada americana os espera. O desaparecimento se torna incidente internacional.
— Você não sabia quem ela era? Não viu na TV? — O policial interrogaria, mais tarde.
— Não vejo TV nem leio jornais, não tenho tempo. — Márcio responde.
Mas uma moradora do Bairro das Pedrinhas viu o noticiário da TV e telefonou para um jornal de Salvador. A notícia se espalha e logo chega a polícia. Mary Kenny, estressada e ainda confusa com as conseqüências de sua aventura, tenta explicar-se.
Raul Martim e Burt Kramer acompanham pela TV a reportagem do resgate da mocinha.
— Well...— diz o americano — foi febre tropical, sim. Só que o surto nessa mocinha foi muito forte!
ANTÔNIO GOBBO –
BELO HORIZONTE, 12/NOV/2005
Conto # 371 da série MILISTÓRIAS