370-VINHO NÃO É PARA GALINHO-Minhas Memórias

— Levantem, meninos! Vamos pra chácara!

Embora levantar cedo fosse difícil para Armandinho e Jairo, a convocação para ir à chácara de vovô Lorenzo os fazia acordar com presteza e saltar da cama de imediato. Mesmo que fosse no domingo, dia de levantar mais tarde.

Aos domingos, a chácara de vovô Lorenzo permanecia como pólo centralizador da família. Os filhos e filhas, criados na pequena propriedade até a idade adulta, quando trocavam o trabalho pesado da olaria por aprendizado de ofício, ou empregos no comércio na cidade, vinham visitar os pais. À exceção de tio Arnaldo, tia Zuleika e os cinco filhos, que viviam na pequena propriedade, distante cerca de uma légua da cidade, e ajudavam vovô na produção de tijolos e pequenas plantações de subsistência e da criação de porcos. Casados ou solteirões, reuniam-se todos os domingos na casa que se tornava pequena para receber filhos, filhas, genros, noras, e a cambada de netos.

Na chácara eram festejadas as principais festas do ano: Natal, Ano-bom (a passagem do ano), e as três festas do mês de junho: Santo Antônio, São João e São Pedro. Os aniversários dos homens eram comemorados com alegres almoços com macarronada e vinho. Às mulheres, todavia, não era dada a celebração de seus natalícios. Pelos menos, nunca tive conhecimento de aniversário das tias ou de minha mãe.

Além das visitas dominicais e das festas marcadas nas folhinhas, ou calendários, havia um fato memorável, ligado à tradição dos vinhateiros do norte da Itália, origem das famílias de vovô Lorenzo. Era quando se fazia o vinho.

Na falta de boas cepas de uvas, fazia-se o vinho de laranjas. Todos os anos, no mês de julho, com a ajuda da família, vovô Lorenzo fazia o vinho a ser consumido durante o ano. Era um processo demorado e trabalhoso. Iniciava-se com a colheita dos frutos de meia dúzia de laranjeiras, reservadas, os galhos carregados das frutas que, maduras ao ponto, se apresentavam em diversas tonalidades de alaranjado, algumas vermelhas como tomates.

Apesar da aparência, os pés de laranjas “de fazer vinho” ficavam intocados, pois elas eram azedas demais. Em seguida, eram descascadas e esmagadas, para obter a calda, ou mosto, que, armazenado em barris, se transformaria, após meses de fermentação, em vinho de suave coloração âmbar, de sabor característico.

Nos primeiros dias de fermentação da calda, havia a formação de uma espuma grossa, que devia ser retirada todas as manhãs. Um trabalho a ser feito com cuidado, para não perturbar a tranqüila fermentação. A espuma, ou borra, retirada com uma grande colher de madeira, era jogada no fundo do pomar, onde passava o córrego.

No ano em que terminou a Segunda Guerra Mundial, Tia Zuleika estava grávida de mais um filho (o quinto da série). Certa noite, Armandinho ouviu a combinação dos pais.

— Preciso ficar com Zuleika, agora que está para dar à luz. — Disse a mãe, dona Nenê.

— Está bem. — Respondeu seu Petrônio, o pai. — Mas você leva os meninos.

Armandinho, com 12 anos, mirrado no físico mas desenvolvido no raciocínio, bom de perguntas incômodas e nas respostas atrevidas; e Jairo, dois anos mais novo, habilidoso em fazer brinquedos, imaginativo ao criar bichos e pessoas a partir de sabugos, chuchus e mamões, eram os filhos do casal.

E assim aconteceu. Mês de julho, de férias escolares, lá se foram os meninos com a mãe, passar uma quinzena ou mais na chácara de vovô, um sonho de todos os primos e primas.

— Mas prestem atenção nas ordens de sua mãe. Não lhe façam nenhuma malcriação, que senão, vão se haver comigo

Tia Zuleika, mulher disposta e trabalheira, ainda se movimentava de lá para cá, apesar da enorme barriga e das pernas inchadas. Não tinha um minuto de descanso. Vovó Carmela, com mais de oitenta anos, pouco podia ajudar. A irmã recém-chegada assumiu, se não todas, pelo menos muitas das tarefas da casa. Limpava, cozinhava, preparava o trato os porcos, mandava os meninos fazer mil-e-uma coisas, que eles obedeciam brincando.

— Armandinho, vem me ajudar a tirar a borra do vinho. — Gritou para o garoto.

Dentro do fresco galpão estavam os barris com o mosto, cobertos por alvos panos de saco de açúcar.

— Segura a bacia aqui perto. — Com cuidado, ia retirando, com uma escumadeira, a espuma grossa e alaranjada, acompanhada de alguns pequenos bagaços e sementes, que flutuavam na espuma.

Fez o trabalho nos três barris, quase enchendo a bacia com o resíduo inútil.

— Agora, você vai até lá no fundo do pomar e joga essa borra no córrego.

Descendo rente à casa e à cerca do galinheiro, o garoto viu quando as aves se aproximaram do cerca de tela de arame, atraídas pelo forte odor acre da espuma. Pensando que as aves gostariam daquele material, Armandinho não teve um segundo de dúvida: atirou, através da tela, a espuma para as galinhas.

— Já voltou? — Estranhou a mãe, assim que o garoto lhe devolveu a bacia para ser lavada. Armandinho não respondeu. Saiu como uma lagartixa, à procura dos primos e do irmão, para continuarem nas brincadeiras.

Mais tarde, quando Vovô Lorenzo e Tio Arnaldo subiam da olaria, para o almoço, passaram pela trilha rente ao galinheiro. Vovô não percebeu mas tio Arnaldo viu as galinhas todas estendidas no chão, umas imóveis, outras com movimentos espasmódicos, se estrebuchando. Notou que algumas reviravam os olhos, e outras estavam de olhos fechados. O galo índio, orgulho da mulher e bom na cobertura das galinhas, estava totalmente imóvel, em um canto sob os poleiros.

— Zuleika! Chega na janela! As galinhas estão morrendo!

Quem assoma à janela da cozinha, que abria para o galinheiro, é vovó Carmela. Vê as aves estendidas e grita:

— Madona Mia! Che há sucesso?

Tio Arnaldo entra no galinheiro e começa a virar as galinhas. Algumas ainda mexem com as asas, ou esporeiam o ar, quando são examinadas. Não, mortas elas não estão. Parece que comeram alguma coisa que lhes fez mal. — Sente o cheiro forte, azedo. Este cheiro.. é da borra do vinho. Jogaram a borra no galinheiro, as galinhas bicaram e estão assim. Elas estão bêbadas!

Correndo, sai do galinheiro e vai até a cozinha.

— Depressa, me dê o sal amoníaco!

Dona Nenê, que preparava a mesa para o almoço, procura nos cantos do armário a latinha de sal amoníaco, utilizada para fazer quitandas. Ele coloca uma pitada de sal num copo d’água, agita com o dedo e desce para o galinheiro. Sabe, por experiência própria, que o amoníaco é tiro e queda para curar uma bebedeira.

Dentro do cercado de tela, vai mergulhando o bico das galinhas na água de amoníaco. Com muito jeito, faz as aves respirarem e ingerirem um pouco da solução. O resultado é imediato. Elas abrem os olhos, soltam pios fracos, logo se põem de pé e saem andando, ainda tontas, sem rumo, esbarrando-se mutuamente. O galo, que estava no canto mais fundo e escuro do galinheiro, é o último a ser atendido. Reage imediatamente, sai correndo, asas semi-abertas, acaba por topar com um pau, mas continua de pé.

Tio Arnaldo só se dá por satisfeito quando todas as aves estão de pé, ainda grogues, mas vivas. Sobe para a casa, copo vazio na mão, a pergunta na ponta da língua:

— Mas, quem foi que jogou a borra do vinho no galinheiro?

Todos já estavam na sala, prontos para o almoço. Armandinho compreendeu a situação e entendeu que de nada adiantaria tentar enganar o tio, a mãe (que lhe dirigia um olhar faiscante) e os avós.

— Uai, tio, eu ia levando a borra pro córgo, quando passei rente ao galinheiro. As galinhas vieram correndo pro meu lado, puseram até o bico pra fora da tela. Pensei: acho que elas vão gostar disso, então joguei a borra no galinheiro. Vi que elas gostaram, pois bicaram até acabar com tudo. Mas não sabia que ia fazer mal pra elas.

Armandinho observou o rosto da mãe. Achou que ela não estava tão braba assim. Tio Arnaldo, que era a calma em pessoa, fingiu-se zangado, e avisou:

— Cê num sabia que aquela borra é fermentada? Até gente grande, se tomar dela, fica tonto na hora.

— Uai, tio, então como é que o vinho não faz mal pra gente?

— Vinho é pra gente grande, seu pirralho. Não é pra galinhas nem pra galinhos, entendeu?

ANTÔNIO GOBBO –

BELO HORIZONTE, 3 DE NOVEMBRO DE 2005

CONTO # 370 DA SÉRIE MILISTÓRIAS –

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 20/08/2014
Código do texto: T4930304
Classificação de conteúdo: seguro