Vôo

O grande pássaro voa rasteiro, já está nessa de voar desse jeito faz duas horas, da estreita janela eu consigo ver quase todo o pátio, não sinto mais os dedos dos pés, aqui o inverno é ártico – sempre o mesmo cheiro, às mesmas roupas, já perdi meus sentidos, sentimentos, todo dia sonho com uma comida diferente nesse lugar e quando as horas não passam começo a rir, e quando a risada dói meus punhos tingem a parede de vermelho. As horas passam é claro, mas não pra mim, não pra nós; não há nada pra nós, o pássaro ainda está lá fora, posso ouvir seus gritos, quem sabe se todos calarem a boca ao mesmo tempo eu consiga até ouvi-lo respirar, fora daqui, longe desse lugar, quero ir pra longe... – às dez da noite o chiado do rádio começa a se dilatar nos corredores; as cinco de todas as porras das manhãs de sábado o padre vêm me dar bom dia, mas a noite foi uma merda e o dia vai ser em dobro. O grande pássaro voa rasteiro, hoje vou pagar meu banho e passar a navalha na cabeça, já é a quarta vez essa semana, dias e mais dias assim – do lado esquerdo do pátio eu consigo ver o topo de uma árvore, maldito topo, não muda, não mexe, ele sempre fica ali inerte no ar, parece que flutua, uma vez bateu um vento e o fez dançar... Então lembrei que lá fora ainda existe dança, o som, os filmes e as outras coisas da vida, um dia esse topo vai secar e cair, a culpa vai ser dos meus olhos que mastigam essa árvore dia após dia. O grande pássaro voa rasteiro em busca de comida, o voo hipnotiza; grandes asas abertas que lembram dedos, um bico sujo esverdeado e o assobio é um rasgo no ar, aquele pássaro teve sorte na vida, mas então por que ele ta aqui, por que ele não voa pra longe, o que prende ele a este maldito pátio se ele tem o céu inteiro pra se jogar? A privação dos sentidos, o jogo da alma, tudo deve estar na mente, essa é a maior prisão que já existiu – li um livro sobre um gigante que levava as crianças de uma aldeia afegã para um lugar melhor do que a guerra, não as prendia, como se fosse um exílio bom – aqui não tem montanhas, aqui tem o topo de uma árvore, o frio, e outros de mim... o grande pássaro voa rasteiro, todos nas pontas dos pés colocam as cabeças raspadas no vão da janela estreita, as garras se fincam num pombo e seu vôo termina no centro do pátio, nos corredores ecoam gritos e urros, um assassinato ao vivo, o grande pássaro bica os olhos e o pescoço da presa, ela tenta se desprender, bater asas mas não tem chance nenhuma contra aquelas garras, com toda a paciência eu vejo o grande pássaro tirar com o bico uma a uma as penas do pombo e logo após isso rasgar sua carne em pedaços... já é a quarta vez só essa semana.