Eu, Garçom

Soube através do Cascão, amigo meu de longa data, que estavam contratando na Pizzaria ******** ,onde ele trabalhava. Ele me encontrou na rua, numa fase em que eu andava sem dinheiro e sem perspectiva alguma de vida, futuro, relacionamentos. Fase que eu inocentemente ignorava ser, na verdade, apenas a realidade que me cercaria eternamente. Passamos algum tempo conversando sobre o trabalho. Ele me explicou que o lugar abria às seis e fechava meia-noite,e apesar de se tratar de uma pizzaria, muita gente ia lá somente para beber cerveja- coisa muito comum em cidades pequenas como União da Vitória, onde você pode beber doses de cachaça até mesmo em padarias-, e portanto, dificilmente o lugar fechava antes das três da madrugada. Perguntei sobre o salário.

-São trinta reais por noite. Tem sapato, calça social preta e camisa branca?" ele perguntou. Respondi que não.

-Bom, vou ver o que posso fazer sobre isso. Sabe onde é? Então, aparece lá, disse ele, me dando um soco no estômago (uma antiga saudação de escola), depois montou na bicicleta sem que eu pudesse devolver o soco e se foi.

Cheguei em casa, e encontrei minha avó lendo na sala. Ela sempre lia a Bíblia Sagrada ou qualquer outro livro de religião durante a tarde. Apesar disso, era uma pessoa muito inteligente.

- Vó, arrumei um emprego, gritei da cozinha.

- Nossa que coisa boa, respondeu ela, com uma voz meiga, como as senhorinhas geralmente falam. E onde é?

- Numa pizzaria.

- O que você vai fazer lá?

- Servir mesas, das seis até as três da matina. Vou receber trinta reais para trabalhar nove horas. O emprego dos sonhos. Agora sei porque o Cascão é meio maluco.

- Outra hora aparece alguma coisa melhor, largue de falar bobagem. E quem é Cascão?

- Um amigo das antigas, tempo de escola. Chega de perguntas vó, por favor.

- Tá. E você que volte a ir pra escola.

- Só se for pra ensinar. Brincadeira, qualquer hora dessa apareço lá.

-Quero ver.Tem comida dentro do forno do fogão. Coma tudo.

Almocei batata cozida com feijão, sambiquira (se você não sabe o que é sambiquira você é possivelmente uma pessoa rica, parabéns), salada de tomate, pepino e suco de limão. Depois fui para o quarto ler, mas não consegui porque meu pai chegou para mais uma de suas desagradáveis visitas. Soube que ele havia chegado pelo modo barulhento e irritante que ele tinha de soltar ar pela boca, como alguém que andou quilômetros, embora, ele raramente caminhasse mais do que algumas quadras por dia.

- Pois é, a coisa tá feia... Acabei de voltar do centro, estive colando cartazes, tá complicado de conseguir alunos, ele disse. Ele era mestre em artes marciais, tinha conhecimento da coisa. No entanto, a vida medíocre que ele levava era de assustar, uma espécie de ciclo, onde ele conseguia lugar pra dar aula, depois alunos, depois começava a beber, depois não ia dar as aulas, depois perdia os alunos, depois perdia os lugares para dar as aulas. Ele vivia com uma mulher, que o ajudava generosamente MESMO no orçamento do lar, lar que é claro, era dela. Ele continuou, cochichando:

- O Ronaldo, tá aí?

- Chegou agora da rua. Arrumou um emprego

Então ele voltou a falar em voz alta- bastante alta, outra de suas irritantes manias:

- O Ronaldo arrumou um emprego, que coisa boa! Olha aí, ó! Porque esse negócio de arte é complicado, isso aí é pra quem tem dinheiro, gente pobre não tem que mexer com isso, um em um milhão de pobre metido a artista da certo. E onde é o trabalho novo?

- Numa pizzaria, respondeu minha avó, calmamente.

- Olha aí, ó! Que maravilha! Isso é trabalho de verdade...

Nessa altura da conversa não aguentei e pulei a janela. Não queria precisar sair do quarto e olhar na cara dele. Meu pai foi casado por duas vezes, casamentos que destruiu com álcool e talento para ofender as ex-mulheres, que de certa forma, não eram lá grande coisa. Estava no terceiro casamento. Na verdade, foi "ajuntado", termo que quase não se usa mais hoje. Ele saiu da casa da minha avó para morar com a nova mulher quando eu tinha quatorze anos, o que foi uma benção. Na época em que morava conosco dava ajudas simbólicas no orçamento do lar. Depois que saiu, levava um pão e um leite semanalmente. Quando levava, reclamando. E só. Meus dois irmãos que ainda moravam lá, decidiram ir embora de casa porque viviam brigando com ele. Nunca investiu em minha educação, em nada que pudesse de alguma forma me qualificar. Mas mesmo assim vivia dizendo que eu tinha dezessete anos e deveria arrumar um trabalho. União da Vitória tinhas apenas serviços brutos, era e é uma cidade industrial. Serviços braçais que ainda assim eram disputados por muita gente. O engraçado é que sempre que alguma coisa dava certo para mim, meu pai se tornava uma pessoa extremamente amigável.

Andei até uma praça, próxima. Levei o livro comigo, e quando cansei de olhar os carros e as pessoas, o que não levou muito tempo, comecei a ler. Era um livro de contos. Autor: Tchekhov. Passei algum tempo lá, fumando e lendo. Quando deduzi que meu pai já havia saído da casa da minha avó- que ele, por alguma razão, considerava dele, mesmo nem vivendo lá-, decidi retornar.

Quando voltei, não havia ninguém. Encontrei um bilhete na mesa da minha avó, dizendo que voltaria a noite e me dizendo para não me atrasar para o trabalho e não deixar o gás ligado caso usasse o fogão. Tomei um banho, me vesti. Depois fui para o quarto e fiquei me olhando no espelho, a fim de verificar se eu tinha cara de garçom. Não, eu não tinha cara de garçom. Talvez as roupas do Cascão me emprestassem um ar de garçom. Quando deu cinco e meia fechei a casa e saí.

O lugar ficava numa esquina, num prédio velho. Por fora o lugar parecia gritar "socorro!". As paredes tinham rachaduras por toda a parte, além do que parecia jamais ter sido pintado desde que fora construído. Por dentro, até que dava pra encarar, constatei depois.

O Cascão estava dobrando guardanapos em pé, diante de uma mesa alta, ao lado de uma banqueta.

- E aí, man, disse eu ao vê-lo

- Fala, grande Roni. Pronto pro trampo?

- Acho que sim. Não acha mais fácil fazer isso sentado?

Ele me olhou, com um ar reservado, de um medo aborrecido:

- Em hipótese alguma sente. Demitem você na hora.

- Hum...

- Suas roupas estão num armarinho no banheiro dos funcionários, atrás daquela porta, no fim do corredor. Se troque e venha me ajudar a montar as mesas.

- Okay.

Fui até o banheiro, pensando que no dia em que eu quisesse demissão, seria simples e sem constrangimento: bastaria sentar. Troquei de roupas, um leve aroma de urina e fezes pairava no ar. Coloquei-me em frente ao espelho para conferir se as roupas me faziam parecer um garçom: não.

Ficamos preparando o salão da pizzaria sozinhos, o chefe só aparecia às sete, horário em que a pizzaria abria para os clientes. Terminamos de organizar tudo no tempo previsto, pouco antes das sete. Encher tubos de maionese, ketchup, mostarda, saleiros, açucareiros; limpar mesas e cadeiras e varrer. Uma certa vontade de ir embora começava vagarosamente a me invadir. Me imaginei com trinta anos, servindo mesa. Ir todos os dias, naquele lugar, varrer o chão e servir mesas. Mas fui forte. Quando deu sete horas, o chefe chegou.

- Boa noite, ele me disse, com uma voz fina. Você é o garçom que o Miguel (esse era o nome do Cascão) indicou?

Era um homem magro, baixo, usava um óculos de aro escuro, moderno, e lentes não muito grossas.

- O próprio.

- Como você se chama?

- Ronaldo.

- Então, Ronaldo. É o seguinte. Atendimento rápido. Rápido e prestativo. Nada de conversar com os clientes. Com os funcionários, somente o necessário. Jamais aceite gorjetas. As gorjetas devem ser entregues para mim, aqui no caixa, como diz esse aviso nessa parede atrás de mim. Caso algum cliente deixe gorjeta na mesa, você deve trazer ela aqui. Em geral ninguém deixa gorjeta, são um bando de sovinas. Mas caso isso aconteça, traz aqui ou rua. Pago 25 reais, para você trabalhar até o fechamento. Se desistir antes, não ganha nada.

- Olha, senhor, o Miguel me disse que eram 30 reais...

- Trinta depois de seis meses. E eu só registro depois de um ano. É pegar ou largar.

Pensei: isso ou meu velho enchendo o saco, isso ou madeireira, isso ou meu velho enchendo o saco...

- Tudo bem, fico com o trabalho.

A porta da frente já estava aberta. Saí. Lá fora, onde havia duas ou três mesas debaixo de um toldo, vi o Cascão.

- E aí, que há pra se fazer?

- Nada. Até que um cliente chegue nada. Apenas permaneça com as mãos para trás como se estivesse algemado, desse jeito como estou e relaxe. Pode ficar lá dentro, se quiser. Ou caminhando. Mas mantenha essa posição das mãos, senão o bicho pega. Ou melhor, aquela bicha mercenária pega...

Rimos.

E foi assim até às nove. Nenhum cliente. De vez em quando o Cascão tirava um pente do bolso e passava no cabelo ou então, o chefe no balcão gemia "ai,ai", bocejando com sua voz de mulher, mas nada além disso. Tédio.

Então chegaram clientes. Consultei o relógio e verifiquei que já passava das nove e quinze. O Cascão foi atender a mesa. Eram dois casais. Estavam bem vestidos. Constatei que chegaram de carro, pois um automóvel vermelho, novo, moderno e encerado, porém feio pra caralho estava do outro lado da rua, onde antes não havia nada. Logo o Cascão voltou.

- A próxima mesa é sua, beleza?

Fiz que sim com a cabeça. E de fato, minutos depois, eu atendia a próxima mesa. Uma família. Pai mãe e dois filhos adolescentes, sendo uma menina e um menino. Queriam o rodízio.

- E para beber?

- Eu quero uma Coca com uma rodela limão sem gelo, disse o papai.

- Eu quero uma Soda com gelo e limão espremido, disse a mamãe.

- Eu quero uma Coca com gelo e sem limão, disse o garoto

- Eu quero uma água com gás e limão, disse a garota.

Fui pegar as bebidas na cozinha, num compartimento ao lado de onde ficavam os pizzaiolos. Senti vontade de cuspir em todos os copos. Odiava famílias felizes que saiam comer em restaurantes, passear em parques, viajar de carro rumo as famosas Cachoeiras do Vale do Iguaçu nos fins de semana. Era um sentimento latente, que às vezes se manifestava, que por extensão, se manifestou bastante por esse período da minha vida. Mas acabei não cuspindo em nenhum copo e levando os pedidos numa bandeja tal como anotei num bloquinho.

- Algo mais, senhores? , perguntei, depois de depositar os copos na mesa.

- Por hora é só. Vamos aguardar o rodízio, disse o pai. Sabe se vai demorar, moço?

- Daqui a pouco começa. Estarei ali naquele canto com as mãos para trás.Se precisarem é só chamar.

Eles pareceram estranhar meu último comentário, talvez considerando- o desrespeitoso. Que não fosse por isso: achei desrespeitoso me chamarem de "moço".

As coisas correram tranquilamente. O rodízio começou, Cascão e eu fomos servindo as mesas que chegavam, e de quando em quando, fazendo comentários sobre o modo suíno como alguns clientes comiam, e principalmente, claro, sobre o decote de algumas belas damas que se encontravam lá. As coisas correram tranquilamente, até que um pessoalzinho chegou. Eu estava lá fora, passando pano numa mesa que estava suja e havia a pouco sido abandonada. Eram seis jovens, três rapazes e três meninas. Os caras estudaram comigo, não os via há algum tempo. Sentaram na mesa que eu havia acabado de limpar e ainda não haviam me visto. Fui para dentro, a fim de pedir para que o Cascão atendesse aquela mesa. Logo vi ele ocupado com uma bandeja em cada mão. Vi também o chefinho por trás do balcão me olhando com cara feia. Subitamente entendi que ele queria que eu fosse atender a mesa lá fora. E fui.

- Boa noite, senhores. Desejam participar do rodízio?

O cara que estudava comigo e estava mais próximo era um orelhudo, era mais velho, tinha dezoito, e foi o que primeiro que levantou a cabeça.

- Não. Viemos beber umas geladas. Traz três garrafas. Tem Heineken?, perguntou o Orelhudo.

- Não. Só nacional.

Murmúrios de lamentação jorraram para cima de mim. Que filhos da puta, pensei. Só porque tem seus carrinhos e namoradinhas e conseguiram empregos em escritórios limpos graças a influência de seus papais acham que são grande coisa... E fazem que nem me conhecem...

- Então traz dois litrões, disse um dos outros caras com quem estudei.

- Skol ou Brahma?

- Brahma.

Fui buscar as cervejas, sentindo uma derrota diante da vida, a primeira vez que eu sentia esse tão conhecido sabor, esse pão embolorado que como todos os dias. Voltei, deixando as cervejas na mesa e os copos. Abri as cervejas e servi nos copos.

- Em qual comanda posso anotar?

- Na minha, disse o Orelhudo, erguendo o papel com um ar de superioridade babaca, como se fosse uma pessoa realmente rica, dessas que viajam para a Europa, religiosamente todo ano.

Anotei e fui para dentro. Minhas pernas começavam a doer, assim como minhas costas. Verifiquei que já passavam das onze. Sentia vontade de fumar. De resolver as coisas. De ir até a casa do meu velho e dar uma surra nele. Matá-lo talvez. Mas fui forte mais uma vez e permaneci.

Fiquei escorado na parede do lado de fora, "afinal, ninguém disse nada sobre se encostar na parede", pensei. De quinze em quinze minutos a mesa do pessoalzinho me chamava, para pedir cervejas, sempre duas. Estavam se revezando nas comandas. E assim atingimos meia-noite e meia; eles me olhando e rindo e bebendo e eu servindo mesas dentro e fora. O rodízio havia acabado, agora só vendiam bebidas. Dentro e fora, cervejas, copos, eu andando, eu escorado, eu indo no banheiro sentar no vaso sanitário por dois minutos para aliviar as pernas, sentindo o cheiro de merda. Uma e meia da madrugada. Fui chamado na mesa do lado de fora. Só restava aquela mesa. Tive que continuar atendendo, não porque o Cascão estava ocupado recolhendo as mesas que restavam e sim porque existia uma política de que eu comecei atendendo uma determinada mesa, eu tenho que terminar de atendê-la, como explicou meu amigo Cascão, naquela manhã em que me ofereceu aquele emprego do qual eu já estava me arrependendo amargamente de ter encontrado.

- Mais alguma coisa?

- Vamos fechar a conta, aqui estão nossas comandas, disse o Orelhudo, estendendo as comandas dele e sua namoradinha.

- E aqui as nossas, disse o amigo do Orelhudo, estendendo sua comanda e de sua respectiva meretriz infante.

Fui lá dentro buscar uma pastinha preta onde fui instruído a colocar o pagamento e as comandas. Voltei na mesa e só então reparei que faltava um casal. Já estava zonzo, devia ser a fome.

- E o casal amigo de vocês, foi ao banheiro?

Eles se entreolharam.

- Não, foram embora, disse o Orelhudo. Acho que pagaram direto no caixa.

Tudo bem, pensei.

Abri a pasta preta que me deram, peguei o dinheiro, conferi.Sobravam cinco reais de troco, o total era 90 reais, e tinha noventa e cinco.

- E quanto ao troco, pode ficar, garçom, disse o Orelhudo, rindo com os outros. Já haviam se levantado e estavam caminhando em direção ao carro.

- Vai tomar no seu cu, orelhudo filho de uma puta, disse eu, baixinho para ele não ouvir, rindo também, afinal a noite havia acabado e logo eu estaria comprando uma cerveja e caminhando para casa, fumando, bebendo e conversando com o Cascão.

Entrei, e o chefe estava no balcão. Levei o pagamento. Ele conferiu.

- Foram servidas mais cervejas do que isso naquela mesa. E estão faltando duas comandas aqui, disse ele, ainda contando o dinheiro, bancando o enfastiado, como se eu estivesse sendo extremamente inoportuno, fosse um mendigo ou algo do gênero.

- Eles disseram que os amigos dele que foram embora antes acertaram aqui.

- Neeeegativo, disse ele, com seu jeitinho afeminado.

- Lamento, eu disse. Talvez eles tenham esquecido de pagar. Vou me trocar.

- É. Talvez. Antes retire a mesa lá fora. Depois pode se trocar.

Retirei a mesa, depois fui no banheiro fedorento me trocar. Quando saí e voltei para o salão, o Cascão já estava sem uniforme, com uma mochila nas costas diante do balcão, recebendo seu extravagante salário de 30 reais. Fiquei atrás dele. Ele estava assinando um recibo. Quando terminou, me olhou e disse que me esperaria lá fora e que eu estava mais feio que no começo da noite. Sempre fazia piadas desse tipo.

- Tá esperando alguma coisa? disse o chefe, que estava contando dinheiro, depois de uns trinta segundos que eu estava lá de pé, na frente dele, como um idiota.

- Sim, o pagamento. Meus 25 reais,

- Hoje você sai daqui de bolso vazio, rapaz. Ou acha que eu posso ter o prejuízo de duas comandas que sairam daqui sem terem sido pagas?

Tentei manter o controle, e calmamente, disse.

- Preciso do dinheiro, não tive culpa alguma disso, por favor.

Ele parou de contar o dinheiro e me olhou, com um olhar de extremo fastio através dos óculos moderninhos.

- Você não vai receber nada. E por favor, vá embora, estou tentando contar o dinheiro.

Comecei a ficar nervoso.

- Ei, espera aí. Eu não tive nada a ver com isso. Que culpa tenho eu se esse pessoal não pagou, se é que de fato não pagou!

- ha ha ha ha! Se tem algum ladrãozinho aqui é você. Eu não te pago nada hoje, filho.

Então minha cólera apareceu. Olhei para ele, quase chorando e tremendo de raiva. Fui lá para fora, e fiquei imóvel na calçada. Vi o Cascão do outro lado da rua, sentado, fumando, me esperando. Olhei através da vidraça, a bicha contando o dinheiro. Encontrei uma garrafa de vinho vazia, jogada ao lado do meio fio. Entrei de novo.

- Olha, acho melhor, você me pagar esses vinte cinco reais! eu disse, com uma voz animalesca, cheia de raiva, segurando a garrafa de vidro na mão, como um maluco digno de internação.

Ele me olhou assustado e pegou o telefone.

- Vou chamar a polícia.

Naquele momento perdi o pouco juízo que me restava. Quebrei a garrafa no balcão, cacos voaram para cima dele, com tão grande estardalhaço que até os funcionários que estavam limpando a cozinha surgiram para assistir a cena. Pouco depois até o Cascão surgiu na porta.

- Como vai ser, disse eu, estendendo meu braço com a garrafa de vinho cortada na mão bem perto do rosto dele, brandindo a garrafa como se fosse uma espada.

Ele pareceu realmente assustado, possivelmente porque eu estava sorrindo, não que sentisse prazer naquilo, apenas para atingir meu objetivo de parecer um psicopata e forçá-lo a me dar a grana. Na verdade, eu até que estava gostando um pouco.

- Toma, tá aqui, disse ele me dando os vinte e cinco reais, tremendo de medo.

Olhei para ele por um tempo que considerei suficientemente assustador e ofensivo, depois para os funcionários que estavam vendo a cena. Pareciam todos amedrontados. E não que houvesse necessidade, mas quebrei a garrafa bem no meio do salão. Depois saí sem dizer palavra. Quando estava na porta, que o Cascão segurava aberta, voltei. Caminhei até o freezer e peguei uma cerveja de litro, que abri com a mão para parecer bem machão, o que doeu pra caralho.

- Essa fica pelo desaforo, disse eu, da porta. E fomos embora, Cascão e eu.

- Nunca mais te indico pra emprego nenhum, me disse ele, já na rua.

- Não será problema, respondi. Não existem empregos nessa cidade, disse eu, bicando a gelada. Acendi um cigarro. Fazia calor naquela noite do fim de mês de Novembro. Não gostava nem de pensar que logo viria o final de ano e as datas comemorativas aporrinhantes chegariam outra vez.

- Papai Noel filho da puta, eu quero matá-lo, eu disse.

- Por falar em papai, seu pai vai virar no diabo por você ter perdido o emprego no mesmo dia em que começou.

- Foda-se ele, eu disse.

Ele parou para acender um cigarro. Pedi um e passei a cerveja para ele. Não havia ninguém nas ruas, agreste interiorista paranaense, noturno e total. Terminou de acender o cigarro, e me passou o isqueiro.

- Mas há um lado bom nisso, meu caro Roni.

- Qual?, disse eu.

- Pelo menos você não tem mãe pra te encher o saco também.

Rimos. Minha vida era uma piada.

E ainda é.

R A Ribeiro
Enviado por R A Ribeiro em 15/08/2014
Reeditado em 15/09/2015
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