265-SÓ POR ESTA VEZ -História de meu pai

Existem histórias que mesmo os que as testemunharam titubeiam em acreditar. Se eu mesmo não tivesse participado, não acreditaria nos eventos que vou lhes narrar. Há locais propícios a certos tipos de acontecimentos. Por exemplo, há lugares espalhados pela Terra em que é grande a incidência de discos voadores, embora muitos leitores não acreditem. Locais visitados constantemente por assombrações, vilas que são passeios preferidos de mulas-sem-cabeça, ou castelos misteriosos habitados por vampiros.

Tabatoa, pequena cidade às margens do Rio São Francisco, é um desses locais em que o extraordinário, o fantástico e o misterioso são recorrentes. Nesse fim-de-mundo os acontecimentos atingem as raias do inacreditável.

Sou médico sanitarista e fui incumbido, com dois outros colegas, de fazer um levantamento sobre as condições de vida dos pescadores que vivem à margem do Velho Chico, residentes em Tabatoa e adjacências. Na manhã do terceiro domingo em que lá estávamos, fui acordado com o bater insistente na porta do quarto. Dona Raimunda, proprietária da pensão, esfregava as mãos, desesperada..

— Doutor, aconteceu uma desgraça! — A mulher tropeçava nas palavras.— Tão vendendo cachaça envenenada! Lá no bar do Jerê.

— Como é que é?— Não acreditei no que estava ouvindo. — Cachaça envenenada?

— É. Falaram que um já morreu, outro tá estrebuchando. Corre lá, doutor, pelo amor de Deus!

Vesti-me rapidamente e corri para o bar do Jerê, que já conhecia, pois era onde a gente passava algumas horas no fim da tarde, espairecendo e tomando algumas cervejas geladas, a fim de amenizar o calor do dia.

Cheguei em poucos minutos. Uma dezena ou mais de homens estava na frente do bar, numa varanda larga, formando grupo cerrado. Abri caminho e cheguei ao centro: dentro do círculo de pessoas estupefatas, dois homens jaziam estirados no chão de cimento.

— Que foi? Que aconteceu? — Perguntei, enquanto me ajoelhava e examinava os corpos. Um, verifiquei de imediato, já estava morto. O outro respirava pesadamente.

— A cachaça... — alguém disse. — Tavam bebendo e caíram aí. Deve ser veneno.

Notei um cheiro forte de aguardente em ambos. Comecei a fazer massagens no que ainda apresentava sinais vitais. Não notei sinais de envenenamento. Parecia que estava em coma alcoólico.

— Um copo d´água. Tragam álcool. Ajuntem os bancos. Vamos deitá-lo sobre os bancos.

Imediatamente apareceu um copo d´água, que enfiei goela abaixo do desmaiado, e uma garrafa plástica de álcool, que passei pela testa, pulsos.

— Um café bem forte. — Pedi.

Colocamos o homem sobre dois longos bancos, colocados lado a lado. Apareceu um travesseiro, que apoiou sua cabeça. Abri sua camisa e esfreguei mais álcool em seu peito.

— Tem amoníaco? — Perguntei mais por perguntar, pois naquela bitácula seria a última coisa a ser encontrada. Milagrosamente, um pequeno frasco me foi entregue. Abri e senti o cheiro forte do sal. Cheguei o frasco às narinas do desmaiado, que reagiu logo ao cheiro ativo.

Abriu os olhos e virou a cabeça, afastando o nariz do vidrinho de amoníaco. Acompanhei o movimento e fiz com que ele inspirasse mais um pouco. Foi saindo aos poucos do estado comatoso e dentro de poucos minutos, tentou sentar-se.

Enquanto alguns o auxiliavam a manter-se sentado, respirando com dificuldade, voltei minha atenção ao outro. O fedor da cachaça era quase insuportável. Confirmei a morte.

— Este já está morto. Mas o que foi que aconteceu? — Perguntei, levantando-me, sem me dirigir a ninguém em particular.

Jeremias, o proprietário do bar, que tinha socorrido com água, café, álcool e amoníaco, explicou a mim e ao pessoal ali reunido.

— Morreram de tanto beber cachaça.

— De certo, a cachaça tava envenenada! — Alguém gritou.

Mandei chamar a polícia, pois o caso parecia ser grave.

— Conheço os dois. — Seu Jerê ia dando explicações. — São o Joel da Sinhaninha e o Roberto Jangada. Eles chegaram aqui ontem de noite, pelas dez horas, e sentaram ali naquela mesa do canto. Começaram a beber uma garrafa de pinga e logo estavam alegres. Me chamaram para servir outra garrafa.

“Jerê, cê vai sê testemunha da nossa aposta" me disse o Jangada. "Nois tamos apostando pra ver quem güenta beber mais cachaça."

“Ceis tão doido!" Falei pros dois. Aí, o Joel, o mais novo, também falou:

“Nois num tá brincando não. Garanto que vou derrubá o Jangada. Traiz cachaça".

Fui trazendo as garrafas e eles, bebendo. Vararam a noite. Quando quis fechar o bar, lá pelas quatro da madrugada, eles passaram pra fora, ficaram na varanda. Já tavam que não podiam nem andar, trocando as perna. Tinham bebido seis garrafas de cachaça. Mesmo assim, me pediram:

“Deixa mais duas garrafa aqui com a gente e pode fechá essa porquera aí..."

“Fui simbora, porque já num güentava mais ficar de pé, de tanto sono. Agora cedinho, quando cheguei pra abri o bar, os dois tava estendido aí, ó, qui nem morto.

Enquanto Jeremias narrava o ocorrido, Jangada, o sobrevivente da terrível aposta, apresentou alguma melhora. Conseguiu ficar de pé e ensaiou alguns passos.

Chegou o delegado, acompanhado de um soldado. Jeremias contou de novo a história da aposta para ver quem bebia mais. Perguntou-me qual seria meu veredicto a respeito da morte.

— Morreu de tanto beber cachaça, sem dúvida nenhuma. — Declarei sem titubear.

— Cabo Jonas, acompanha o Jangada até a casa dele. — Determinou o delegado. — E dá um pulo na casa da dona Sinhaninha, avisa que o filho tá morto aqui no bar do Jerê. Mas avisa com cuidado, não vai a velhinha morrer de susto, hein?

E dirigindo-se ao dono do bar:

— Seu Jerê, o senhor fica responsável pela remoção do corpo. Não houve crime, apenas um excesso de bebedeira, e portanto, não tem motivo para abrir inquérito policial.

Dirigindo-se aos assistentes, que teimavam em permanecer ao redor do morto:

— Vocês aí, ajudem o Jerê a levar o morto pra casa. E o senhor, doutor, forneça o certificado da morte do Joel.

À tardinha, cumprindo meu dever de médico, fui levar o atestado de óbito de Joel da Silva, “com 23 anos de idade, morto devido à ingestão de excessiva dose de álcool”.

O velório estava em andamento, a casa cheia e o pessoal se esparramando pela rua, defronte a casa, e pelo quintal, nos fundos. A estranha causa mortis havia despertado a curiosidade do pessoal da cidade. Passei, por uma questão de solidariedade e curiosidade, na casa de Jangada, a ver como ele estava se recuperando.

A mulher me atendeu na porta.

— Foi bão o sinhor chegá. O Jangada tá dormindo desde cedo, quando vortou do bar. Deitou aí na cama, nem a roupa tirou. Drumiu qui nem um gambá bêbado. Já fais um tempão que tou querendo que ele acorde, mode cumê quarqué coisa, mais ele continua durmindo.

Entrei na humilde casa de pescador. No quarto, notei logo o cheiro característico. Ajoelhei-me ao lado da cama, onde Jangada jazia. O homem, ao chegar em casa, entrara num sono do qual não acordaria nunca mais.

ANTONIO GOBBO —

B. HTE, 27.SETEMBRO.2005

Conto # 364 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 09/08/2014
Reeditado em 10/08/2014
Código do texto: T4916364
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