358-AGONIA DO VELHO CHICO- Histórias do Rio São Francisco

CAPÍTULOS:

1-A lenda de Iati

2-O Rio Conta

3-A Lapa do Frei Francisco

4-A transposição- Idéia Maluca

5-Notícias do Futuro

-Atentado a bomba

-Relatório do engenheiro Bruno Comarato

-Relato de um morador de mocambo à beira do rio

A LENDA DE IATI

Meu nome é Iati. A saudade mora em minha alma desde eras imemoriais. Às lágrimas vertidas dia e noite dos meus olhos por causa dessa imensa e indefinida saudade, juntam-se outras tantas, que, pouco a pouco, vão formando o rio, a correr por entre montanhas e planícies, até chegar à Água-Grande, a mãe de todas as águas.

Nem sempre chorei de saudade. Tempo houve em que era feliz, com meu amado prometido Pium-hy. Foi nas vésperas da cerimônia de nossa união que a desgraça aconteceu. A tranqüilidade das terras onde nossa tribo morava, no alto do chapadão, foi abalada pela chegada de muitos homens de caras pintadas para a guerra. Nosso povo era pacífico. Vivendo isolados aqui nessas alturas tocadas constantemente pelas nuvens que beijavam as matas, não estávamos preparados para enfrentar os guerreiros que vieram do norte. Mesmo assim, nossa tribo, graças ao conhecimento das grotas e cavernas, esconderijos seguros, conseguiu sobreviver. Após a retirada dos terríveis caras-vermelhas, foi organizada uma expedição de vingança, porque muitos homens, mulheres e crianças foram levados pelos temíveis comedores-de-gente.

Por onde passaram nossos guerreiros, a trilha ficou marcada. Muito voltaram com notícias dos terríveis entreveros entre os caras-vermelhas comedores-de-gente e nossos guerreiros. Igual a muitos combatentes, meu noivo Pium-y nunca voltou. Morreu quando uma seta envenenada com timbó varou seu corpo.

O desespero encheu meu coração. Minhas lágrimas foram se ajuntando ao orvalho das manhãs frias, ao sereno das noites iluminadas pelas estrelas e pela lua e às de muitas outras mulheres que perderam seus prometidos ou companheiros. São tantas, que empapam a terra e escorrem pelas ravinas, formando um riacho, enchendo o leito que era o caminho calcado pelos passos dos nossos guerreiros.

Tenho a consciência de tudo o que acontece durante o percurso das águas. De maneira mágica e misteriosa, o fluir das lágrimas me proporcionam o conhecimento sobre o córrego, que, mais além, desaba na primeira cascata e segue, entre penedos e paredões, crescendo com a chegada de outras torrentes, formando um grande rio.

Através dos tempos, estou condenada ao sentimento da saudade e a carpir a ausência de meu prometido. Minha sina não tem fim

O Rio conta

Deixem-me contar antes que seja tarde demais. Já fui rio grande, forte e limpo. Manso nos espraiados, feroz nas gargantas e temível nas enchentes. Meu curso é um dos mais estranhos. Minha origem é na Serra da Canastra, no sul de Minas Gerais. As águas brotam num descampado no cimo da serra. Logo, alguns córregos vão se aproximando, formando uma corrente que, não muitos quilômetros abaixo, despenca na cachoeira conhecida como Casca d’Anta. Sigo deslizando serenamente na direção do leste, mas outros desígnios me estão reservados. O leito me conduz para o norte, em cujo percurso, vou recebendo afluentes: Paraopeba, das Velhas, Abaeté, Paracatu, Urucuia, Carinhanha, Corrente, Grande. E prossigo, atravessando as terras de Minas, da Bahia, virando para o leste, fazendo confrontações de Pernambuco com Bahia, de Sergipe com Alagoas.

Hoje não sou mais nem sobra do que fui. Durante séculos, antes da chegada do homem-branco, corri ponderoso e sem obstáculos. Proporcionava às tribos alimento farto, servia como ligação entre elas, seja na paz como na guerra. Minhas características como enorme caudal permaneceram inalteradas por milênios.

A chegada do homem-branco, com as canoas de vela, foi minha desgraça.

A Lapa do Frei Francisco

A ação do rio, no seu roçar constante durante séculos, escavou na rocha calcária um magnífico salão, tão amplo quanto uma imensa arena, tão imponente quanto uma catedral. Em suas andanças pelo interior, Frei Francisco da Soledade se depara com a gruta. O ermitão, decepcionado com seus semelhantes, varava os sertões da Bahia, em busca não se sabe do quê, quando encontra o magnífico local. Vê, de imediato, a grandeza do local e sente a santidade do ambiente. Com cuidado para não destruir nada que a natureza durante séculos havia construído, êle ergue um altar e passa a exercer seu ministério na gruta, a qual lhe proporciona também moradia.

Das estalactites pinga água fresca e cristalina. A notícia do altar erigido na gruta leva algumas pessoas em romaria a visitar o local e seu residente, o carismático frei. A água abençoada é coletada com cuidado por alguns visitantes, os quais, de volta aos seus lares, a usam como panacéia para seus males. Curas ocorrem. A boa nova se espalha.

O sítio se torna conhecido como Bom Jesus da Lapa, e tornou-se destino de milhares de romeiros que para lá se dirigem, em busca de conforto, de cura, de milagres.

Defronte a lapa o rio continua correndo, impávido, tranqüilo e constante, indiferente às centenas de embarcações que transitam por suas águas, levando num grande mutirão de fé e esperança.

A Transposição do Rio – Idéia maluca

Nascendo em terras do Sul de Minas, O São Francisco, em seu caminho para o norte e depois, para o leste, recebe, na primeira metade de seu percurso, importantes afluentes, que vão transformá-lo em importante artéria fluvial, que deságua, finalmente, no Oceano Atlântico.

Já no norte de Minas o seu trânsito começa a ser feito por regiões semi-áridas. O sol causticante do sertão aliado ao desmatamento sistemático faz com que as terras ribeirinhas se apresentem como partes do clima do nordeste brasileiro. Mas não são terras ruins. Ao contrário, a fertilidade do vale do São Francisco tem sido comprovada com a implantação de muito projetos de agricultura irrigada. Frutas, algodão, soja, feijão e até café são algumas lavouras que se beneficiam das águas do rio. Bombeadas ou dirigidas por canais em nível, as águas do grande rio transformam extensas áreas de terra seca em pomares, vergéis e cultivares que mancham indelevelmente de verde o ocre das montanhas nuas.

Barragens com diversas finalidades foram construídas ao longo de seu curso, represando e domando a força das águas. Três Marias, Sobradinho e Itaparica são represas que domam o grande rio.

Uma idéia bizarra e totalmente desprovida de embasamento e que, se realizada, irá ferir de morte o Velho Chico é a Transposição.

Não é nova a idéia de transpor as águas, através de canais artificiais, para regiões ao norte — Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. No século 19 o deputado cearense Marco Antonio Macedo queria que as águas fossem transpostas a partir de Cabrobró, em Pernambuco, para as cabeceiras do Riacho dos Porcos, pra influir no Rio Jaguaribe, no Ceará. Euclides da Cunha, autor de Os Sertões , também foi defensor da idéia, que só não foi adiante por questões políticas e pela falta de estudos técnico que consentissem a sua viabilidade.

Entretanto, no início do século 21, a idéia voltou a ser inserida nos discurso de políticos e até nos planejamentos dos ministérios da república. Basicamente, consolida-se na construção de dois grandes canais — Eixo Leste e Eixo Norte — cuja extensão total soma 720 quilômetros. Dois aspectos são assustadores neste projeto megalomaníaco: primeiro, o custo, orçado em R$ 3 bilhões, em 2001, já está inflado para R$ 4,5 bilhões, em 2004, isto sem que nada de novo fosse acrescentado ao plano inicial. Em segundo lugar, a vazão do rio, destinada ao projeto, prevista para 26 metros cúbico de água por segundo (ou seja, l,5% da vazão da Barragem de Sobradinho) poderá mudar o curso da história do Velho Chico.

Notícias do futuro

Notícia divulgada na RedeBrás-TV, em 14 de maio de 2052

“Ativistas do movimento “Defensores do Rio São Francisco” assumiram a autoria do atentado a bomba ocorrido ontem de manhã na sede da Comissão de Exploração do Vale do São Francisco. O artefato explodiu no 34o. andar do edifício-sede daquela entidade, causando a morte do Presidente e mais cinco auxiliares diretos, e ferimentos em mais de trinta pessoas. A organização “Defensores” está classificada, no Ministério de Segurança Interna como “terroristas de alta periculosidade” e se contam ás dezenas os atentados à bomba por todo o nordeste do Brasil. Eles querem uma imediata solução para o grave problema do Rio São Francisco e de toda a região da sua bacia hidrográfica” .

Relatório do engenheiro Bruno Comparato, especialista na bacia hidrográfica do Rio São Francisco, datado de 2 de setembro de 2053.

“Os problemas do Rio São Francisco começaram com a destruição das matas ciliares ao longo de todo seu percurso, desde a nascente, na Serra da Canastra, até a foz. Mas a degradação do rio começou mesmo, principalmente em seu curso em terras nordestinas, com a construção dos canais para levar água do rio aos outros cursos d’águas nos estados de Ceará, Piauí, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Alagoas. A vazão inicial foi aumentada gradativamente, à medida que grande projetos de irrigação se instalaram ao longo dos canais. Inicialmente, era de apenas 1% da quantidade que o rio despeja no mar, foi sendo elevada gradativamente, quando os projetos demandaram mais e mais água. A degradação das margens do rio abaixo da represa de Itaparica aconteceu em poucos anos. A margem seca foi ocupada, em ambos os lados, por construções pobres de agricultores e residentes nas áreas ocupadas pelos grandes projetos de irrigação, que beneficiam exclusivamente empreendimentos de grande porte, forçando os habitantes das regiões irrigadas a cederem, por preços irrisórios, suas propriedades. Eles vieram se estabelecer à beira do rio, na esperança de viverem da pesca. São milhões de favelados que habitam os mocambos à beira do rio. A pesca não produz mais nada, e a fome campeia por toda a região.

O rio se transformou num simples riacho e na foz, os mocambos em ambas as margens,.já se comunicam entre si por rudimentares pinguelas sobre o minguado curso d´água.

A água diminui cada vez mais, e a poluição inviabiliza seu aproveitamento. As represas, que no início eram um meio de regular a vazão do rio, abaixaram os níveis, com efeitos catastróficos”.

Relato de um morador da favela da margem do Rio São Francisco, por nome Garibaldo Inácio da Silva. Publicado na revista Leiajá, de 14 de março de 2055.

“Pois é, seu moço, a vida aqui tá por um fio. Num temos mais peixe nem terra, nem pra onde ir, pois o rio não serve mais pra botá canoa. A gene tá condenada a morrê por aqui mesmo, qui nem as criança num tem sustento. Sinhor veja o seguinte. A gente tinha um pedaço de chão, cerca de meia quarta de terra, lá nas beira do Piranhaçú, muitas léguas daqui, num dava pra ajuntar dinheiro mais também a gente num morria de fome. Um ano de chuva sarvava outro de estiage. Mais vieram os home do govêrno e das companhia propondo negócio das terras. Eu num queria saí, mas finarmente os home da companhia de irrigação me deixaro sem jeito nem de sair da minha terra. Fecharam as estrada, cortaro os fios da eletricidade e cercaram a beira do rio. Fui obrigado a negocia cum eles. Fui pra capitár, mais aí num tinha cumo ganhar a vida, tudo era pago no dinheiro. Perdi três fio quando morei lá, de fome e de doença. Intonces, vim pras marge do rio, quando inda tinha arguma pesca, mais agora, nem peixe tem mais. Sinhor tavendo: até onde a vista arcança, é um mocambo só. Os caminhão de cumida e água que o guverno manda num dá nem pro começo. Tem gente morrendo de fome e sede todo santo dia. A água do rio a gente num pode usa, tá poluída, o sinhor tá sentindo o fedô? Tenho quatro criança lá dentro do mocambo, tá tudo contaminado, doente. A muié tombém tá doente, é uma disgraceira. Num tem lugar nem pra enterrá os morto.”

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 07/08/2014
Reeditado em 07/08/2014
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