355-O EXORCISMO-Sátira religiosa
— Então, Carlos, quantos votos você acha...?
— Pára, pára! Hoje tamos aqui pra comer e beber. Política só amanhã.
E a comedeira, acompanhada de muitas e muitas caixas de cerveja, litros de uísque e muita cachaça varou o dia e entrou pela noite. Mas, cientes de que a segunda-feira os aguardava com muito trabalho, foram saindo pelas nove, dez horas e antes da meia-noite os convencionais do PT já haviam deixado a ampla casa onde churrasco e feijoada haviam sido servidos aos políticos da região em quantidade inimagináveis.
Carlos exagerara na dose, ou melhor, no garfo. Comera até mais não poder. A mulher o admoestara por diversas vezes, no decorrer do dia. Mas o glutão estava com apetite.
— Ora, Dolores, me deixa. Depois, tomo um Engov.
No dia seguinte acordou cedo e levantou-se bem humorado. Vestiu o melhor terno e lá foi à Convenção Anual do PT, à qual estaria coordenando. Pegou o carro e estava nas proximidades da casa onde se localizava a sede regional do partido — uma mansão enorme, com amplos salões — e onde seria realizada a convenção, quando sentiu a primeira fisgada. Aquela fisgada que anuncia o destempero intestinal, já sua conhecida.
Caraca! Não vai dar tempo de chegar à sede.
Pisou no acelerador, ultrapassou um sinal, enquanto sentia a revolução nos intestinos. Começou a suar frio. Um peido fedido escapou, poluindo a cabine do carro. Abriu as janelas, tentou sentir a brisa da manhã. Mas nada aliviava a terrível tensão, a ânsia incontida de fazer um “despacho”. A imagem de uma privada obliterava todas as outras, não via mais por onde passava, dirigindo por instinto.
Chegou ao destino, encostou o carro e saiu correndo em direção aos WCs do primeiro pavimento. A casa já fervilhava de convencionais, por entre os quais passou sem dar atenção a ninguém. As três cabines estavam todas em uso, trancadas. Correu ao segundo pavimento.
— Porra, parece que todo mundo tá com piriri
No segundo pavimento, tal qual o primeiro, as privadas todas em uso. Desvairado, na iminência de “despachar” a qualquer momento, desce as escadas e dirige-se à porta da rua. Já não raciocina mais. Na rua, olha para um lado, olha pra outro. No meio do quarteirão está a Igreja Mundial, aberta bem de manhã para as primeiras práticas religiosas do dia. Sem saber por que, desce na direção do templo. Na calçada, alguns rapazes e moças, todos de camisas brancas, calças ou saias azul-marinho, recebem os fiéis e convidam os transeuntes a participarem da primeira liturgia do dia.
Ao notar a vinda de Carlos, desvairado pela necessidade de encontrar uma privada, as mãos cruzadas atrás, na tentativa de segurar qualquer coisa que pudesse sair de si, um dos jovens abre-lhe os braços:
— Vinde irmão! Venha exorcizar o demônio. A hora é esta. A porta está aberta!
Carlos nem pensa no que está fazendo. Entra pela igreja, as coxas juntas, em passos miúdos à maneira de Carlitos.
— Entre irmão! — O pastor já está a postos, no altar. — Livre-se do demônio que o atormenta desde que você acordou.
Carlos olha para os lados. Vê um sinal discreto, indicativo dos sanitários masculino e feminino. Corre naquela direção. Entra numa ampla sala onde estão enfileirados, de um lado, as pias, com estojos de papel, secadores automáticos e saboneteiras. Do outro, uma serie de cabines. A primeira está trancada, a segunda idem. Desesperado e já sentido um frio escorrer por entre as nádegas, entra na terceira, desocupada. É o tempo de abaixar as calças, arrebentando botões e zíper, e se sentar, sentindo, o frio da borda de cerâmica e o alivio da tremenda defecada que, de um jato, enche a bacia do sanitário, ao mesmo tempo em que um “trovão” se ouve e um fedor dos infernos toma conta do ambiente.
Ai, que alívio! Parece que o capeta saiu de dentro de mim.
Uma sensação de imensa paz invade Carlos. Nada a fazer, apenas deixar-se ficar ali, sentado, gozando a calma e a tranqüilidade, o corpo livre daquela carga diabólica que lhe impregnava totalmente. Sentiu um vazio pleno de felicidade.
Fez a higiene, limpando-se com vagar e prazer. Realmente, parece que o diabo estava dentro de mim. Saiu do cubículo, lavou as mãos, passou-as pelos cabelos, pelo rosto, e ficou satisfeito com a imagem refletida no espelho.
— Agora, sim, estou novo de novo.
Ao sair do templo, ainda estão as moças e rapazes aliciando os passantes. O mesmo que o convidara a entrar, reconhecendo-o, lhe dirige a pergunta:
— Então, irmão, ficou livre de Satanás?
— Sim, irmão. Agora estou limpo, por dentro e por fora. — O bom-humor de volta permitia-lhe uma brincadeira.
— E o dízimo, irmão? Deixou o dízimo?
— Sim, irmão. Deixei lá dentro tudo o que podia deixar para me libertar do capeta fedorento que estava dentro de mim.
ANTÔNIO GOBBO =
BELO HORIZONTE, 15 DE AGOSTO DE 2005
CONTO # 355 DA SÉRIE MILISTÓRIAS