353-POLITICA É IGUAL CACHAÇA-Crime e política
As rivalidades familiares e antigas rixas de grupos do imenso interior do país desandaram em acirrada politicagem, tão logo Getúlio Vargas foi deposto e organizaram-se os partidos políticos. Na pacata São Roque da Serra, houve a radicalização entre dois partidos distintos — UDN e PSD. Todos os dois partidos conservadores, cada qual à sua maneira. Quem era de uma facção evitava passar perto do “adversário” e havia até separação no footing nas noites de domingo: os pessedistas faziam-no na praça da Matriz e os udenistas no largo da Igreja do Rosário. Na Rua Hermes da Fonseca só circulavam udenistas, enquanto a Rua Rui Barbosa era exclusiva dos pessedistas.
Dr. Ildeu Capistrano Filho, conhecido por Dr. Fiinho, nos seus trinta anos, competente médico, pouco se dava se seus clientes fossem deste ou daquele partido. Era filho do Coronel Ildeu Capistrano, Chefe udenista da cidade e região, que não gostava da imparcialidade do filho.
— Presta atenção, Fiinho. Não fica atendendo essa raça de pessedistas, isso tudo é víbora. Deixa eles pro doutor Anor, que é da mesma laia.
— Ara, pai, na minha profissão tenho de atender a quem me procura, quem precisa de meus serviços. Fiz juramento e hei de cumpri-lo.
— Essa sua mania de ser médico de todo mundo ainda vai lhe dar dor de cabeça. — vaticinava o irmão, doutor Mateus, advogado com banca na capital.
Certa noite, foi procurado por enviado do vereador Tibúrcio Silva, líder do PSD, tipo valentão e famoso por mandar assassinar desafetos de negócios e de política. Morava no distrito de Vilarinho, lugarejo distante da cidade umas dez léguas, onde estava sua extensa fazenda.
— Major Tibúrcio quer que o senhor vá ver a mulher dele. Tá cum dificurdade pra dar à luz. — Antão Barbosa girava na mão o chapéu de palha, como que pedindo desculpas. — Tou cum o jipe aqui na porta pra levar o senhor.
Apesar do juramento e da disposição em praticar bem a sua missão, o doutor Ildeu achou inconveniente o chamado, principalmente pelo adiantado da hora.
— Acho que você errou de consultório. O médico da dona Margarida é o Dr. Anor. Mora do outro lado da praça.
— Ele tá viajando. A parteira mandou procurar o médico, que a “coisa” tá complicada.
E lá foi o Dr. Ildeu no jipe, único veículo capaz de enfrentar a estrada para a fazenda Morro Vermelho.
Encontrou a parturiente em trabalho de parto. A parteira, dona Inhazinha, desesperada.
— A criança tá atravessada, doutor. Só o senhor ajudando.
Por mais que se esforçassem doutor Ildeu e dona Inhazinha, a criança não sobreviveu ao parto.
— Fizemos o possível, Major. — Assegurou o doutor. — Mas não teve jeito.
O major não disse uma só palavra. Sua carranca mostrava bem o ódio que lhe ia na alma. Foi pra cozinha, onde mandou o capataz levar o médico de volta à cidade.
— O major diz que mais tarde acerta a conta com o senhor.
Era prática comum, no interior e naqueles tempos, que as contas de fazendeiros fossem acertadas por ocasião de grandes negócios, como a venda da safra de café ou de uma partida de boi gordo. Assim, o doutor Ildeu se viu credor, sem querer, de um dos adversários políticos do seu pai.
Cerca de uma semana depois, já assistida pelo doutor Anor, a mulher do Major Tibúrcio veio a falecer, por complicações advindas do parto.
O doutor Ildeu atendia seus clientes onde quer que fosse necessária sua presença. Quando se dirigia às fazendas e sítios, usava seu próprio carro, um bravo Ford-29. Num desses atendimentos, lá pelas bandas do Córrego do Orvalho, o médico foi assassinado com certeiro tiro na cabeça.
— Foi coisa de pistoleiro de aluguel. — Correu o boato entre o povo, que aumenta mas não inventa.
— Mas o doutor Ildeu era um santo, não tinha inimigo de jeito nenhum.
Um boato mais velado atribuiu o mando da morte ao vereador viúvo..
— Com certeza — dizia-se — foi vingança dele pela morte da criança e da mulher.
O Delegado de Polícia Francisco Aguiar não conseguiu solucionar o crime e muito menos encontrar o culpado. Da capital veio o Dr. Mateus, que acompanhou as diligências do advogado. Não tendo ficado nada satisfeito com o pouco esforço delegado, deu início à sua própria investigação. Começou interrogando pessoas, rodando pelas estradas percorridas pelo irmão.
Na tarde de quarta-feira, estava se dirigindo para o Sítio do Esteio, onde morava dona Inhazinha, a fim de conversar com ela e saber de detalhes do parto. Passara além da fazenda do Major e subia a Serra dos Bugios. Seu jipe enfrentava bravamente as curvas, subidas e descidas da estrada, rente a paredões a pique ou bordejando os precipícios altíssimos. Sentiu quando começaram as estranhas vibrações nas rodas e a direção deixou de obedecer ao seu comando. Não houve tempo de frear. Descontrolado, o jipe resvalou pela beirada da estrada e despencou pelo precipício.
O doutor Mateus teve morte instantânea.
A boataria chegou junto com a notícia da morte do advogado, filho do poderoso chefe udenista. .
— É coisa de política. — diziam uns.
— ”Falaram” que os parafusos da roda do jipe tinham sido afrouxados. — diziam outros.
O que jamais foi apurado pelo delegado de polícia, que, a título de ser imparcial, não querendo “ofender” a nenhum dos chefes políticos, arquivou o caso como “insolúvel”, mesma categoria na qual classificara o assassinato do doutor Ildeu.
Ainda hoje, mais de cinqüenta anos das misteriosas mortes, o caso é rememorado pelos mais antigos, exemplo de como as paixões políticas podem desencadear crimes e impedir as investigações.
Seu Lilico, idoso habitante de São Roque da Serra, escrivão aposentado, sentado ao sol da praça, tem uma conclusão toda sua para aquele e outros tantos crimes, misteriosos e não resolvidos, na certa todos cometidos por políticos:
— A política é igual cachaça. Uma vez viciado o cidadão, tira-lhe o discernimento, abate sua moral e torna-o o mais vil dos criminosos.
ANTÔNIO GOBBO –
BELO HORIZONTE, 5 DE AGOSTO DE 2005
CONTO # 353 da Série MILISTÓRIAS