350-A GUERRA DAS LARANJAS- Memórias da meninice

A GUERRA DAS LARANJAS

Era rotina da família a reunião, nas tardes de domingo, na chácara de vovô Lorenzo. A proximidade da cidade facilitava a caminhada e as gostosas quitandas providenciadas por vovó Mariana eram as iscas para todos os filhos, filhas, genros, noras, e netos. Só por motivo de doença ou viagem é que se justificava a ausência de algum membro do clã.

Houve uma época em que cerca de dez netos, entre meninos e meninas, estavam naquela idade entre 12 e 15 anos, hoje conhecida como “idade da aborrecência”. Naquela época, entretanto, a gente não aborrecia muito os pais, desde que nos fosse concedida a liberdade de brincar soltos e livres em todos os recantos da pitoresca propriedade.

O pomar era nossa área preferida. A qualquer época do ano havia algum tipo de fruta,. No início do ano, tínhamos as mangas; depois, goiabas de novembro a março; laranjas pelos meados de abril e maio; no meio do ano, muito caqui, abacaxi, maçãs e pêras; jabuticabas e lixívias e abacates no final do ano. Mamão e banana não tinham época, era o ano inteiro.

No grande pomar, entre as dezenas de laranjeiras, sete permaneciam intocadas durante toda a safra. Eram as “laranjas de fazer vinho”, azedas e difíceis de serem descascadas, pois tinham a casca agarrada. Com essas laranjas vovô fazia um vinho amarelo e forte, cuja safra distribuía aos filhos.

Naquele ano de 1948, entretanto, uma séria ocorrência impossibilitou a produção do apreciado vinho de laranjas. Tudo aconteceu numa tarde de domingo de junho, muito fria, apesar do sol brilhante num céu de azul sem nuvens. Enquanto os “mais velhos” conversavam na casa grande, os netos (e mais alguns amiguinhos) enveredaram pelo pomar. As laranjas já há muito tinham acabado, só ficando intocados os tais pés de “laranja de fazer vinho”.

— Vamos experimentar aquelas — Sugeriu Douglas, guloso e gorducho.

— São muito azedas. — Avisou Orlando.

Não demos importância ao aviso do primo. Subimos nos pés e, usando pequenos canivetes (cada qual tinha o seu), começamos a chupar as laranjas.

— Credo, é azeda demais. — gritou um.

— Bem que avisei. — Falou Orlando.

Alguém jogou uma laranja em alguém, gritando:.

— Toma essa! —

— Bosta! Me acertou! — Um grito e um revide.

De súbito, estourou uma verdadeira “guerra”: todo mundo atirando em todo mundo.

— É guerra!

— A guerra das laranjas.

A gritaria acompanhava os arremessos. .

— Toma!

Plaft!

— Errou, bobão!

Ploc!

— Ai. Ai. Vou te acertar!

Uma bem madura, quase podre, estourou no meu peito. Blarrg!

Os meninos agiam com a agilidade de macacos. Os projéteis passavam por entre os ramos e, se não atingiam os adversários, batiam nos galhos, estourando e molhando quem estivesse por perto. Não demorou muito, todos estavam marcados, em algum lugar do corpo, por laranjas arremessadas a esmo ou com pontaria.

À medida que os frutos iam rareando, os meninos subiam nos galhos mais altos. Um galho quebrou com Jairo, que caiu da árvore. Levantou-se mancando.

— Vou contar pro vovô!

— Plaft.

— Vai, enredeiro!

— Plaft.

Jairo saiu correndo na direção da casa, para delatar todo mundo. Ninguém deu bola para a ameaça do primo. A guerra continuou.

É incrível o poder de destruição dos garotos. Em cada árvore havia dois ou três meninos, atirando-se mutuamente. O chão já estava coalhado de laranjas arrebentadas, e poucas restavam nos galhos mais altos, quando chegaram Jairo, vovô Lorenzo, tio Arnaldo e tia Zuleika.

— Parem com isso, moleques! — Tio Arnaldo estava uma fera. — Agarrou o primeiro que desceu, justamente o Douglas, que, por ser gorducho, era menos ágil. Vovô Lorenzo tentou pegar o Armandinho, mas este escapuliu.

— Cê me paga, sem vergonha! —

— Mas que é isto? — Tia Zuleika começou a lamuriar. — Acabaram com as laranjas de fazer vinho!

— Vou castigar todos vocês. – Segurando Douglas pela orelha, tio Arnaldo ameaçava os outros, que conseguiram escapar e corriam para o fundo do pomar. — Não adianta fugir, cêis vão ver!

Vovô Lorenzo olhava triste para o chão, onde as laranjas se espalhavam, arrebentadas. Olhou para as poucas que ficaram nos pés e constatou, com tristeza:

— Este ano não vai dar pra fazer vinho.

O castigo veio a cavalo, como se dizia. Os garotos foram aparecendo, não mais reunidos, mas um a um, cabeças baixas, roupas manchadas, rostos afogueados, o medo estampado nos olhos.

— Pra começar, vão limpar todo o pomar. Vão catar todas as laranjas e levar pro cocho do curral, para as vacas.

Já estava escuro quando terminamos a colheita fatídica. Ficou a critério de cada pai castigar seus filhos em casa. Não me lembro do que tocou para os outros primos, mas para mim foi duro agüentar passar um mês inteirinho (ou seja, quatro domingos) sem ir à chácara de Vovô Lorenzo.

ANTÔNIO GOBBO –

BH, 7 DE JULHO DE 2005 –

CONTO # 350 DA SÉRIE MILISTÓRIAS -

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 02/08/2014
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