Maria Francisca

Maria Francisca Assis de Moura, filha mais jovem duma família atípica, marcada pelas desgraças que ultrapassavam os limites habituais noutras famílias existentes. Via-se até com olhares desatentos não ser a pobreza a desgraça-mor que tirava da família qualquer espírito virtuoso. A bebedeira insaciável do pai, os incontroláveis furtos do irmão mais velho, castigados com deveras crueldade, a vendição da carne exercida prazerosamente pela Irmã do meio, apesar das sovas que lhe faziam das marcas sinal inapagável da pele, em virtude da compulsão transloucada da mãe em agredir os filhos até vestígios de sangue, sem escapar até mesmo a doce Maria Francisca, que nada acrescentava para desgraças da família; em comparação com todos esses pecados, que o desconhecimento em sê-los agravavam o peso, a pobreza em nada lhes podia acrescentar. Nesse meio em que Maria criou-se. Criou-se, pois, mais a si cuidou do que teve de cuidados. Desde nova cuidava em não repetir desgraças semelhantes, censurando a si pensamentos fora da virtuosidade, fiando-se em confissões semanais e exames de consciência diários. E se a família lhe em nada ajudava, ao menos tinham o pingo da decência que assegurava que em nada a ela atrapalhariam. Sem dar conta, deram-na a melhor das ajudas: sossego. Sossego, pois, fossem gritarias, fossem brigas, permanecia admiravelmente com o domínio de si; e por pior que fossem os castigos cuidava de, prontamente terminados, dobrar orações, e transferir para os joelhos às dores dum braço ou outro.

Quis o destino, quiçá a Divina Misericórdia, contrastar o mal uso da vida com sua existência em grau tão elevado: o amor, a devoção, a piedade, em doses humanamente desusadas.

Mas se em alguma coisa a caridade humana inveja sua ruindade, é que a despeito dos maus olhos tem ao menos a vantagem de ser vista; e de pouco em pouco cessava o sossego a Francisca.

A mãe cobrou-lhe tanto emprego que fê-la abandonar os estudos para ambular vendendo qualquer coisa que lhe dava. Quando malogrado era seu dia de venda, descontava qualquer ruindade da alma em sovas na mocinha.

Correu o tempo. Pedia conta a desgraça, com impiedade semelhante com a que tinham de si, e o pai veio a falecer. Dizem uns por bebedeira outros por bondade do tempo, e mantendo a inutilidade regra dos palpites, os tantos e tantos em nada alteravam a morte do velho. Correu obra de cinco meses, a mãe fez crer que endoidaria, e de já não aguentar companhia ou sovas, Francisca fora levada sem escolha pelos irmãos.

Quis o destino que a mãe flagelasse a própria alma e acabasse morrendo, por tempo ou remorso. A morte faz pouco caso de diagnósticos. Se antes eram órfãos por vontade, agora o eram verdadeiramente.

Tudo isso ocorreu antes de Francisca cravar quinze anos. E prolongou-se por anos mais.

Saudade tinha do pai, saudade tinha da mãe, e convertia as lágrimas em orações, que via ser mais proveitosas aos defuntos. Mas começava a vacilar o coração por todos as desgraças que davam-se na sua tenra vida, e numa casinha alugada, paga com furtos e libertinagem, Maria titubeava em ser a mesma. Nisso correu ano, até o irmão mais velho ser preso, e por cobranças de dificuldades financeiras, impôs a irmã que Maria fosse vender-se por auxílio.

‘Auxílio de quê? Para quem?’ Pesava na alma de Maria a escolha da moeda com que se dava paga às bondades que fizera. Negou. Resistiu o quanto pode, sem sucesso.

Toda noite lagrimava tempo sem conta, odiando a si mesma de pouco em pouco. Cada noite chorava menos por odiar-se mais. Abandonou as contas com Deus, por vergonha, e quis o tempo ensinar-lhe o ódio em investidas contra si.

Nisso viveu obra de três anos, quando beirou os dezoito, a irmã dispensou-a da obrigação. Quase moça, Maria decidiu viver por si, comunicou à irmã que não a censurou. Despediu-se. Amou-a como jamais fez, e foi-se.

Maria acabou por esmolar, buscando mais perdão que dinheiro, desejando alimentar menos o corpo que a alma. Tornou a orar na dose em que se acostumara a o fazer, dessa vez, pedindo unicamente que Deus perdoasse tanto a ela quanto aos que viu pecar. Cada noite desprotegida na rua lhe aumentava o medo e a busca pela salvação da alma.

Resistiu nisso obra de ano, esmolando para conseguir o mínimo de alimento, resignando-se de não dar cabo da própria vida, não na morte, mas na desistência. Enfraquecida desde o corpo as virtudes, envergonhada dos pecados mormente do ódio, Maria foi buscar Igreja para ter confissão.

Encontrou uma capelinha de Nossa Senhora onde ordenava um padre de idade mui avançada. Tomou Missa, e após, fez, sem perceber, largo tempo de reza. Tomou coragem, foi ter com o padre, e confessou. Confessou desde quando vacilou em orar pelo pai ainda vivo, até as vergonhas que sentia antes de entrar na igreja. Falou da amarga vida no prostíbulo, da esmoleira, do ódio que fê-la entortar a alma, tudo disse com sofreguidão que não tinha igual. Perdoada que foi, não aguentou-se, sequer a censurou de o fazer, e deu-se às lágrimas. Tão-logo realizou ordenada penitência, perdoada que estava, fez-se feliz. Esqueceu todas as desgraças passadas, e empenhada em começar nova vida, foi ao padre pedir ajuda, que deu-a oferecendo emprego na capela. Acordaram algo bom para ambos, e lá deu-se o restante da vida de Maria. Lá tornou a ter vida virtuosa e retidão da alma que tanto buscava.

Quis o destino adir à felicidade da moça a presença mais que repentina da irmã, que, arrependida, lá animou-se dar a Deus conta dos pecados cometidos. Maria Reconheceu-a sem barragens, feliz como jamais esteve pela conversão da irmã, conseguiu-lhe também empreguinho na capela, e passaram a ser três a trabalhar na região pelas almas humilhadas e arrependidas.

Pobres como dantes, família como seriam sempre, dessa vez atípica pela salvação que se dera. O destino não lhes deu satisfação da vida do irmão, por quem rezavam dias sem esquecer, bem como o faziam por outros membros da família e tantos que a Deus e aos Santos conseguiam seus corações caridosos encomendar orações.

Deu-se isso antes de Maria cravar cinquenta anos, por manobra do destino, quem sabe pela Divina Misericórdia.

Luís Moreira
Enviado por Luís Moreira em 28/07/2014
Código do texto: T4900278
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