339-CHÁ DAS CINCO EM PELOTAS- Viagens

Havia um pernoite obrigatório em Camaquã, onde, bem de manhãzinha, os três amigos tomariam o ônibus para Pelotas. O combinado entre eles era passar a última semana do ano e os primeiros dias de 1956 na cidade famosa pelos seus doces e por sua população de veados (naqueles tempos, era assim que se escrevia viado).

Geraldo e Douglas eram colegas de trabalho, funcionários do Banco do Brasil. Cariocas, acostumados à vida de grande metrópole, sentiam-se desajustados na pequena cidade de Arroio Raso. Raimundo, sergipano, muito queimado, mais para mulato, era o novo secretário da prefeitura, nomeado pelo recém-eleito prefeito Dr. Aquileu. Também ele se sentia em meio estranho, não só pelo bairrismo como pelos preconceitos dos habitantes. Muitas pessoas o tomavam por preto (então, preto era preto mesmo) e seu ingresso no pequeno clube social da cidade fora barrado, sem uma explicaçâo plausível, a não ser pela cor da pele.

A cidade escolhida ficava a quatrocentos quilômetros ao sul e o único meio de transporte, naquela época de poucos carros, era a jardineira diária. Saindo de Porto Alegre äs quatro da madrugada, passava por Camaquã as sete da manhã e chegava a Pelotas às quatro da tarde..

Para tomar a jardineira matutina, os três se alojaram em modesta pensão próxima ao local chamado de “estação rodoviária”. Seriam cerca de dez da noite quando deram entrada na pensão. A atenciosa proprietária entregou a chave do quarto, recomendando:

— Agora está quente, mas de madrugada esfria. Deixem o edredão nos pés da cama, para se cobrirem quando esfriar. Ah! E levem estas espirais para afugentar as muriçocas.

Os três ocuparam um mesmo quarto, amplo, que tinha a um canto uma pia, com uma única toalha de mão dependurada num prego enferrujado.

— Já ouvi o zunido de muriçoca. Vamos logo acender essas espirais para espantar os bichinhos. — Assim dizendo, Douglas, com o isqueiro, acendeu e distribuiu as espirais, espalhando-as pelo chão, sob as camas. O suave cheiro de eucalipto tomou conta do ambiente e os rapazes logo estavam ferrados no sono.

Pela madrugada, Geraldo sentiu frio e, entre dormindo e acordado, puxou o edredão sobre si. Estava escuro, mas viu as horas no relógio de pulso, de mostrador fosforescente.

— Quatro horas. Ainda dá pra dormir um bom tanto.— E virou para o lado.

Acordou algum tempo depois, com a voz de Douglas.

— Geraldo! Raimundo! Acordem. Tou sentindo cheiro de queimado.

Tossia forte. Acendeu o isqueiro e dirigiu-se para o interruptor de luz. Quando a fraca lâmpada foi acesa, se viram imersos numa fumaça. .

— Tem alguma coisa queimando aqui dentro!

— Abre a janela!

Não viram labaredas. Geraldo,ao descer da cama, pisou, sem ver, numa pequena brasa.

— Ai! Queimei o pé.

Então viu: o edredão estava queimando lentamente, sem levantar chamas. Havia caído da cama sobre a espiral acesa. O tecido e a lã do recheio queimavam lentamente.

— Vamos chamar a dona da pensão. — Raimundo falou em voz baixa, sem querer fazer alarme.

— Não! Vamos primeiro apagar o edredão. — Mesmo sentindo o pé queimado, Geraldo puxou o edredão para perto da pia. Agitando as mãos sob o jato da torneira, esparrama água sobre a parte em combustão. Em minutos, eliminou o foco de fumaça. Pela janela aberta, a fumaça desvaneceu-se.

Passaram a verificar o estrago. O edredão estava queimado numa das pontas, uma área de quase um terço. O chão, de cimento, estava molhado e sujo de cinza.

— Puta merda! Escapamos por pouco. — Raimundo estava assustado. .— Vamos acordar a dona da pensão e falar o que aconteceu.

— Espera aí. O perigo já passou. Se a gente chamar a mulher, ela vai ficar apavorada. — Geraldo procurava colocar os pensamentos em ordem. — E vai querer cobrar o prejuízo do edredão.

— Cê não está pensando em...— Raimundo começou.. Foi interrompido por Geraldo.

— Claro, vamos sair agora. Já são quase seis horas, tá amanhecendo. O pernoite tá pago. Quando a faxineira vier, estaremos longe.

— Mas não...— Douglas quis entrar na conversa. Não conseguiu.

— Além do mais, o culpado sou eu. Eu sou quem vou pagar pelo prejuízo. Vamos sair agora mesmo.

Em nome do companheirismo, concordaram com Geraldo. Aprontaram-se, arrumaram as malas e saíram pela porta da pensão. O velho que cochilava na portaria estranhou a saída naquela hora.

— Estão saindo cedo, tchê! O ônibus só passa às sete.

Geraldo inventa uma desculpa.

— Vamos ver se pegamos uma carona. Os caminhões passam cedo.

O velho insiste na conversa.

— Querem um café. Ou uma cuia de mate?

— Não, não precisa se incomodar. Obrigado. — Geraldo está com pressa, ansioso em se distanciar da pensão o mais depressa possível.

Na porta da ”rodoviária” ficam os três, em alta ansiedade, aguardando a abertura dos guichês.

— Vai que o velho entra no nosso quarto...só pra conferir...

— Vira essa boca pra lá, Douglas.

Os funcionários abrem o guichê de passagens. Eles são os primeiros — e únicos — a comprar as passagens.

Os moços passam a próxima hora olhando, ansiosos, para a esquina onde está a pensão, e para o final da rua, no lado contrário, por onde chegará o veículo.

Suspiram aliviados quando a jardineira aparece, rodando lentamente. Parece uma eternidade o percurso pela curta e estreita rua.

Tão logo o ônibus encosta e abre a porta, adentram-se, atropelando-se.

— Calma, tchê! O motorista desce tranqüilamente, a ver se tem mais passageiros.

Os rapazes sentam-se, afundando-se nas poltronas. Quanto mais demora, maior a ansiedade.

O motorista, não tendo mais passageiros para embarcar, sobe solenemente e dá partida. O veículo sai lentamente, afastando-se da rodoviária e aproximando-se da esquina da pensão. Já toma velocidade quando Geraldo vê, semi-encoberto pela poeira, o velho porteiro da pensão saindo em desabalada carreira, agitando os braços , atrás da jardineira..

O motorista nada percebe e acelera, entrando na faixa negra de asfalto deixando pra trás a cidade.

Os três rapazes entreolham-se e respiram, aliviados.

Chegam a Pelotas pelas três da tarde. Suados, empoeirados, cansados da viagem de oito horas, com uma parada para ligeiro lanche ao meio-dia. Estão com fome, mas prevalece o desconforto, que os leva a procurarem um hotel sem mais tardança.

Banhados, barbeados e vestindo roupas limpas, eis os três rapazes flanando pela praça principal da cidade, procurando um local para se dessedentarem e aquietar os estômagos com algum lanche rápido. Entram num estabelecimento que aparenta ser bar e restaurante ao mesmo tempo. As mesas são enfileiradas ao longo das paredes, no estilo dos antigos pubs ingleses, isoladas por bancos com encostos altos.

— Hum-hum! Está me lembrando da última vez que nunca estive em Londres. — Brinca Douglas.

— Arre, égua!. Tou cuma sede arretada. Vou querer um chope duplo

Assentados, conversam enquanto esperam o garçom. Jogando conversa fora.

— Escuta essa:o escrivão pergunta ao noivo: “O senhor nasceu em Pelotas?”. Ai o cara responde, mais do que depressa: ”Não, senhor. Nasci inteiro e de uma só vez“.

O garçom permanece encostado no balcão. Não vem atender os únicos clientes.

— Garçom, por favor! — Chama Raimundo.

De má vontade, o serviçal se aproxima. Nada pergunta. Encara Raimundo de maneira esquisita.

— Queremos bebidas. — Pede Raimundo. — Pra mim, chope duplo, super-gelado, sem colarinho.

O garçom ignora o pedido de Raimundo. Olha para os outros e começa a falar, melifluamente:

— Aqui não servimos gente...

— O quê? Não tem chope? — interrompe Raimundo.

O garçom se retrai. Douglas, adivinhado a causa pela qual o garçom reluta em servi-los, cochicha no ouvido de Raimundo.

— Calma, cara. Parece que aqui não servem gente de cor.

Raimundo perde a voz. Um mal-estar se estabelece entre os rapazes e o garçom maneiroso.

— Como é que é? — Geraldo entra na conversa, pretendendo esclarecer a situação.

O garçom retoma a informação, com trejeito característico de nativo:

— É que agora não servimos gente que quer beber cerveja o chope.

— Agora, como? Tem horário pra isso?

— É sim. Já são cinco horas. = explicou o garçom, com ademanes De agora em diante, só servimos chá com torradas. — Colocando as mãos na cintura, capricha no trejeito — É que está na hora do CHÁ DAS CINCO..

ANTONIO GOBBO –

BELO HORIZONTE, 12 DE ABRIL DE 2005-

CONTO # 339 DA SÉRIE MILISTÓRIAS =

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 28/07/2014
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